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Acompanho os textos de Carlos Cardoso Aveline há muito tempo,
especificamente os que ele escreveu para a Revista Planeta, publicação que
possuía um conteúdo voltado ao esoterismo e à espiritualidade e que, nas
últimas décadas, passou a adotar um editorial focado mais nas questões
ambientais, nas novas tecnologias, na educação e na ciência, certamente em
busca de um público mais amplo.
Recentemente voltei a acompanhar o jornalista e escritor
gaúcho no Facebook, plataforma em que publica diariamente diversos textos de
cunho teosófico, espiritualista e ambientalista – o Carlos Aveline é também
ativista ambiental e seus textos nessa temática são inspiradores, tanto que
resolvi transcrever aqui no Odepórica
uma de suas postagens recentes que muito me tocou, excerto de um capítulo de
sua obra intitulada A vida secreta da
Natureza.
Para os que, assim como eu, cada vez mais privilegiam as
viagens que contemplam os ambientes naturais, essa pequena obra é de leitura
obrigatória; fundamentada no conceito da ecologia profunda, os textos fazem uma
ponte entre a ecologia e a espiritualidade focada na Natureza – uma
espiritualidade não doutrinária, aberta a todos os que buscam um sentido maior
para a existência.
“A natureza, cuja evolução é eterna, possui valor em si
mesma, independentemente da utilidade econômica que tem para o ser humano que
vive nela. Essa ideia central define a chamada ecologia profunda (expressão
criada durante a década de 1970 pelo filósofo norueguês Arne Naess) – cuja
influência é hoje cada vez maior – expressa a percepção prática de que o homem
é parte inseparável, física, psicológica e espiritualmente, do ambiente em que
vive.”
Há beleza em todos os capítulos dessa obra, a começar
pelos títulos de alguns textos: O Oceano
Primordial, Conversando com a
Floresta, A vida Secreta do Cerrado,
O Poder Oculto dos Rios... a cada capítulo,
um insight, uma visão profunda da vida, um toque de poesia. Uma inspiração. Se
você ouviu o chamado da Natureza, esse livro é para você.
♣
“Navigare necesse, vivere non necesse”, diziam os antigos
navegadores. E, de fato, na primeira
metade do século 21 não pode haver dúvida de que navegar, ou viajar, é
necessário. A ciência moderna demonstrou que viajar é viver, porque tudo o que
existe flui em um eterno movimento.
O núcleo de cada átomo do universo é como um pequeno sol
em torno do qual navegam elétrons em alta velocidade. Nossa galáxia é regida
pela lei do movimento. A própria palavra “planeta”, que vem do grego, significa
“errante” ou “viajante”. A terra já foi
comparada a uma nave espacial, devido à sua viagem incessante em torno do
sol. Além disso, nosso planeta gira em
torno do seu próprio eixo, o que dá origem aos nossos dias e noites.
Parece pouco? O sistema solar também está em
peregrinação. Ele viaja à velocidade de 960 km por minuto ou 57.600 quilômetros
por hora em direção à estrela Vega, a mais brilhante da constelação de Lira.
Felizmente, Vega não está parada. Ela se desloca pelo cosmo numa direção e com
uma velocidade que garantem pelo menos uma coisa: ela nunca será alcançada por
nós. [1]
A mudança e o movimento – tanto internos como externos – são,
portanto, o estado natural de tudo o que existe. Qualquer imobilidade ou
estabilidade são subjetivas e passageiras. Permanentes são a transformação e a
harmonização dinâmica das coisas em todo o cosmo. A cada desarmonia, segue-se
uma harmonia maior e mais completa.
Se tudo está em movimento e nada existe fora da dança do
universo, não há motivo para que nós queiramos viver permanentemente fechados
entre quatro paredes, como se fosse possível existir sem transformar-se. É só
quando perdemos o contato com o ritmo natural da vida que o escritório, a
fábrica, o apartamento ou a casa passam a funcionar como modernas prisões,
ricas em recursos tecnológicos.
Segundo o filósofo Karl Gottlob Schelle, viver
continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito das pessoas e
enfraquece o seu bom senso.
“O movimento do corpo não é diretamente uma das condições
da vida”, escreve Schelle, “e sua ausência não desencadeia irremediavelmente a
morte … mas ele é, no entanto, uma condição indireta. Ele é indispensável para
a saúde do corpo e para o bom funcionamento do organismo.” [2]
A preservação da força vital passa pela simplicidade
voluntária. Basta caminhar regularmente ao ar livre e conviver com o ambiente
natural para recuperar e manter a vitalidade. A antiga arte de passear pela
natureza rompe os muros invisíveis da rotina e amplia nossos horizontes
pessoais.
É verdade que essa arte meditativa nem sempre precisa ser
praticada a pé. A bicicleta e o cavalo são alternativas admissíveis, até certo
ponto, porque permitem andar em silêncio, em baixa velocidade, em contato com o
vento, percebendo a magia da natureza e participando do mistério da sua paz.
A arte de viver com sabedoria inclui a necessidade de
manter o corpo físico saudável e acostumado ao movimento. Isso nos estimula a
tomar duas providências. A primeira é incorporar um pouco de trabalho físico à
nossa rotina diária. A segunda é adotar o hábito de meditar caminhando.
Passear e contemplar a unidade da vida são duas
atividades que podem ser feitas ao mesmo tempo. Quando caminhamos pela natureza
com o espírito livre de preocupações, nosso sistema nervoso relaxa, o sangue
circula com mais força e vitalidade, o cérebro e o coração têm sua vida
renovada. Em todo o organismo, a vitalidade flui melhor. Enquanto isso, podemos
contemplar o processo da vida ao nosso redor e perceber mais claramente a nossa
identidade profunda com os outros seres.
Outra questão é saber o que o caminhante carrega consigo
durante o passeio. Afinal, cada espírito humano possui uma espécie de
bagageiro. Ali vão inúmeras lembranças, ideias, crenças, projetos, e alguns
princípios éticos. Nem sempre carregamos bagagens agradáveis em nosso espírito.
Há também feridas e cicatrizes da alma guardadas ali. Uma coisa é certa, porém.
O bom passeador não aceita angústias e ansiedades como parte da sua bagagem.
Enquanto pedala ou caminha, ele esquece as atividades de
curto prazo e expande sua consciência. As preocupações vão desaparecendo junto
com as outras formas de apego emocional.
Esse processo de relaxamento é ajudado pelas reações bioquímicas que o
exercício físico moderado causa naturalmente no corpo humano. O espírito do
caminhante se eleva até que um dia ele passa a perceber em todas as coisas o
princípio universal do equilíbrio e da harmonia.
É com esse estado de espírito vasto e sereno que devemos
caminhar. Aquele que possui uma mente aberta e um coração puro sabe escutar
melhor o som do vento nas folhas das árvores. O aprendiz da sabedoria ouve o
cântico dos pássaros e aprecia o nascer do sol sem pressa ou apego. Com a mesma
tranquilidade que tem ao observar o vôo de um pássaro no céu, ele vê as ondas
de pensamentos e sentimentos no espaço interior da sua própria consciência.
Na verdade, não há uma separação entre o mundo interno e
o mundo externo. De um lado, as nossas emoções são influenciadas pelo que está
fora de nós. E de outro, sempre julgamos o mundo externo a partir daquilo que
carregamos em nossa própria mente e nosso coração.
Há milhares de anos, diferentes tradições religiosas usam
longas peregrinações por terras desconhecidas como meio e método para a
libertação dos apegos interiores. É preciso abrir mão tanto dos objetos
externos como dos conteúdos internos, para conhecer a liberdade espiritual. O
budismo, o hinduísmo e o cristianismo têm disciplinas espirituais que incluem o
abandono da vida “normal” – feita de hábitos e compromissos – para viajar pelo
mundo durante um período indefinido de tempo.
As caminhadas curtas também são parte daquilo que, não
por acaso, passou a ser chamado de “caminho interior”. O ato de caminhar era um
item básico da vida cotidiana e da disciplina espiritual nas escolas de
filosofia do mundo antigo.
Para o cidadão moderno, os passeios a pé, de trinta ou
quarenta minutos diários, são exercícios eficientes de meditação e higiene
mental. Alguns alegam que não têm tempo
para isso. O argumento é compreensível. O hábito de caminhar exige que se abra
mão da rigidez e da imobilidade. É necessário renunciar à rotina da pressa
emocional para olhar o mundo de outros pontos de vista, enquanto mantemos o
corpo em movimento e observamos o fluxo de nossos sentimentos e
pensamentos.
A prática do desapego está de tal forma associada à arte
de passear que, para o escritor chinês Lin Yutang, “o verdadeiro viajante é
sempre um vagabundo, com as alegrias, as tentações e o sentido de aventura que
tem o vagabundo. Viajar é andar à toa, ou não é viajar”. Segundo Yutang, “a
essência da viagem é não ter deveres nem horas marcadas”. É recomendável
esquecer os assuntos pessoais.
Ele acrescenta:
“O bom viajante é o que não sabe aonde vai, e o viajante
perfeito é o que não sabe de onde vem. Nem sabe seu nome e sobrenome. (…) É
provável que esse viajante não tenha um único amigo em terra estranha, mas,
como disse uma monja chinesa, ‘não estimar a ninguém em particular é estimar a
humanidade em geral’. Não ter um amigo particular é ter a todos por amigos.
Esse viajante, que ama a humanidade em geral, mistura-se com ela e vagueia,
observando o encanto das gentes e de seus costumes.” [3]
Defensor da espontaneidade, autor de obras marcadas pelo
espírito taoísta, Yutang afirma que o equipamento mais necessário para quem
passeia “é um talento especial no peito e uma visão especial debaixo das
sobrancelhas”. Ele prossegue:
“O que interessa é saber se o viajante tem coração para
sentir e olhos para ver. Se não os tem, suas excursões à montanha são pura
perda de tempo e de dinheiro; em compensação, se os tem, poderá conseguir a
maior alegria das viagens sem ir sequer às montanhas, mas permanecendo em sua
casa e olhando os arredores, e percorrendo os campos para contemplar uma nuvem
fugitiva, ou um cachorro, ou uma cerca, ou uma árvore solitária.”[4]
Em meio à natureza, o caminhante renova a sua vitalidade
física enquanto medita. Se meditar é expandir a consciência em direção ao que é
imenso, sagrado e muito maior que ela própria, então é possível haver
meditações inconscientes e involuntárias. E é isso que ocorre quando
caminhamos. O convívio com plantas e animais nos ensina que a inteligência
universal está por toda parte.
Há uma inteligência nas orquídeas. Os pássaros têm sua
linguagem. O vento sugere coisas. As árvores são seres evoluídos. Para o
escritor Maurice Maeterlinck, cada planta que encontramos pelo caminho é um ser
dotado de inteligência:
“Não é somente na semente ou na flor, mas em toda a
planta, caule, folhas e raízes, que se descobre, se quisermos inclinar-nos por
um instante sobre seu humilde trabalho, numerosos sinais de uma inteligência
perspicaz. Lembre-se dos magníficos esforços em direção à luz feitos por galhos
contrariados, ou a luta criativa e valente das árvores em perigo.”
E Maeterlinck narra o drama de uma grande árvore situada
à beira de um precipício, cuja pedra de apoio caíra, mas que se sustentava
miraculosamente lançando novas raízes ao solo para evitar o pior. Espetáculos
como esse são relativamente comuns nas margens dos rios atacados de erosão. [5]
Depois de discutir a questão da inteligência dos vegetais
e dos insetos, Maeterlinck aborda em poucas palavras um tema central da
filosofia esotérica:
“Mas que pouca importância tem, no fundo, a questão da
inteligência pessoal das flores, dos insetos ou dos pássaros! Que se diga, a
propósito da orquídea como da abelha, que é a Natureza e não a planta ou a mosca
que calcula, combina, adorna, inventa e raciocina. Que interesse pode ter para
nós essa distinção?”
Na verdade – acrescenta Maeterlinck – também os
conhecimentos humanos fazem parte da natureza. Nossas pequenas inteligências
pessoais são parcelas de um conjunto maior: “Todos os nossos motivos
arquitetônicos e musicais, todas nossas harmonias de cor e de luz, etc., são
tomadas diretamente da Natureza”. [6]
Sabendo disso, o bom passeador caminha ou pedala em
harmonia com o cosmo, tanto na avenida de uma grande cidade como na beira do
mar ou na trilha de um bosque. Ele
percebe a unidade da vida e se reconhece como um pequeno ser participante da
grande inteligência universal. Por esse motivo, o caminhante sente que nada tem
a temer do passado, do presente ou do futuro. Ele vê que, no fundo, a paz
comanda a vida – não só aqui e agora, mas também em todas as partes, e
sempre.
♣
Notas:
[1] “O Livro de Ouro do Universo”. Ronaldo Rogério de
Freitas Mourão, Ediouro: 2001, 509 pp., ver p.136.
[2] “A Arte de Passear”. Karl Gottlob Schelle. Ed. Martins Fontes: 2001, pp. 16-17.
[3] “A Importância de Viver”. Lin Yutang. Ed. Globo:1959, tradução de Mário Quintana, 360 pp., ver p.
267.
[4] “A Importância de Viver”, obra citada, p. 269.
[5] “La Inteligencia de las Flores”.Maurice Maeterlinck,
Ediciones Nuevo Siglo, Buenos Aires: 1997, 126 pp., ver pp. 13-14.
[6] “La Inteligencia de las Flores”, obra citada, ver pp.
59-60.
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Fonte: capítulo 15 do livro “A Vida Secreta da Natureza”,de Carlos Cardoso Aveline, terceira edição,Editora Bodigaya, Porto Alegre, 2007, 156 pp.