Numa dessas boas promoções de final de ano, quando
grandes livrarias montam bancas em que livros dos mais diversos gêneros são
postos à venda a preço de revista semanal, pesquei esse exemplar de Alain
Ducasse, um dicionário da cozinha francesa em que cada entrada quase sempre vem
acompanhada de uma pequena crônica, gostosa de ler.
Gosto de livros de chefs escritores onde as
receitas ou são sucintas, ou inexistem, salvo poucas exceções, como os
best-sellers do Jamie Oliver, bons de folhear e colher ideias, assim como os do
Gordon Ramsay, que entrega muito de suas viagens em suas receitas, embora
particularmente não aprove o jeito arrogante deste último.
Ainda não li nada do Anthony Bourdain, que
assim como os outros acima citados, conheço apenas dos programas de televisão,
mas imagino que seus livros devam ser muito interessantes, tomando como
referência seu trabalho no programa No
Reservations, do Travel Channel.
E minha cultura gastro-televisiva morre aqui, ou seja, de culinária não entendo
nada além do óbvio, mas mesmo assim gosto de ver essa turma trabalhando,
posando de star.
Lembro-me de um programa que não perdia por
nada, agora me veio à mente...duas senhoras gordinhas que perambulavam pelo
interior da Inglaterra numa moto sidecar (onde o carona vai sentado num
carrinho lateral), quase um programa humorístico, embora as apresentadoras
levassem tudo a sério. Fui pesquisar e descobri que o programa, da BBC,
chamava-se Two fat ladies, com Clarissa
Dickson Wrigth e Jennifer Paterson (ambas falecidas).
Se você nunca assistiu a um episódio desse
programa, procure assistir, mesmo que a culinária não seja uma paixão sua. O
legal do programa é que a cada episódio elas pegavam a motoca e iam para alguma
cidade pequena do interior; ao chegarem ao local, misturavam-se ao povo,
entravam em mercados e pequenas mercearias, na casa de algum fazendeiro ou de
uma pessoa qualquer que lhes parecesse interessante e colhiam informações de
receitas locais. Depois disso, compravam os ingredientes e cozinhavam para quem
quisesse provar, e o lance todo acaba virando uma festa. Não me lembro de
nenhuma receita daqueles programas, mas me marcou para sempre a overdose de
manteiga e creme de leite e carnes gordurosas que elas usavam em quantidades
quase absurdas em suas receitas, vez ou outra tirando sarro com a cara dos
vegetarianos. Imperdível, vale a pena buscar na internet alguns episódios.
Aqui no Brasil tem gente bacana que também
escreve sobre gastronomia de maneira peculiar; minha preferida é a Sônia
Hirsch, uma sannyasin da saúde, que
ama os gatos e escreve principalmente sobre alimentação e saúde, com uma pegada
meio filosófica oriental que tem muito a nos ensinar. Leitura para quem curte
uma onda mais natureba e se preocupa com a qualidade de vida. A Sônia tem um
blog excelente que já virou uma enciclopédia de artigos sobre esses temas,
sempre muito bem esmiuçados em suas obras, todas elas indispensáveis. Fica a
dica.
Outra tiazinha bacana, que lembra a Sônia no
estilo de escrita, mas não se apega à questão do “saudável” na culinária é a
Nina Horta, que escreve semanalmente na Folha de São Paulo. Em muitos artigos a
Nina fala de suas viagens, de seus bons momentos em Paraty, de suas leituras na
área e de suas lembranças de comilanças boas pelo país afora. Às vezes
filosofa, também, e nos brinda com algo além do trivial sobre a mesa. Nina
publicou um livro chamado Não é sopa,
com as crônicas que publica no jornal, que um dia emprestei e nunca mais voltou.
Se você achar “dando sopa” por aí, compre que vale a pena.
O texto que você lerá a seguir, colhido da
obra supra citada do Alain Ducasse, resume bem a importância da comida, do
paladar, do rito da comensalidade que fazem qualquer experiência de
deslocamento algo transformador; muito de uma cultura se aprende sentado à
mesa, circulando por mercados, feiras livres, restaurantes e botecos. Se a
refeição acontece na casa de um local, mais rica a experiência, uma vez que a
mesa se transforma num espaço de troca. Para ir mais longe, indico um texto bacaníssimo
do Leonardo Boff, de uma coleção chamada Virtudes
para um outro mundo possível vol. III: A
comensalidade, Ed. Vozes. Namastê!
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As viagens são uma das minhas grandes
paixões. Não apenas pelo amor da descoberta e da paisagem nova, mas também pelo
prazer de “dar de cara” com objetos, produtos, modos de fazer desconhecidos,
insólitos que, primeiramente, atiçam minha curiosidade, para em seguida
passarem a fazer parte das minhas lembranças, do meu imaginário, e das minhas
pequenas felicidades.
Cada um de nós não traz em si, lá no fundo,
aquela criança da qual fala Baudelaire, para a qual “o universo é igual a seu
vasto apetite”? o planeta sempre será para mim um terreno de explorações, de
achados e de experiências; regiões até então desconhecidas, um belo dia se
tornam finalmente acessíveis, cidades se constroem, se modificam, novos
caminhos se abrem para sempre diante da minha infinita curiosidade, encontros
insólitos são marcados.
Olhando para outras paisagens, indo ao
encontro de outros povos, de outros modos de vida, o olhar se afina, a memória
se enriquece, o modo de pensar evolui e se adapta. Mais do que nunca – no
momento em que ressoa no planeta o eco trágico das guerras e das explosões – é
ainda tempo, e sempre será, de abrir os olhos para outros horizontes.
Quer sejamos um “homem apressado”, à maneira
de Paul Morand, querendo captar e compreender o essencial de uma cidade em
vinte e quatro horas; quer sejamos sonhadores, desejosos de aproveitar a
simples felicidade de um passeio ao sol, uma feira na Provence, ou uma
caminhada por uma praia, à beira do oceano; quer seja refazendo o caminho do
peregrino, cuja viagem passa pela descoberta de si mesmo.
A viagem, na sua essência, é descoberta.
Pequenos prazeres concretos e carnais ou grandes emoções artísticas, pouco
importa. O procedimento é o mesmo. Conhecem os falafels? Geralmente, são bolinhos fritos, feitos de farinha de
grão de bico, bem conhecidos em todo o Oriente Médio, e que constituem,
principalmente, o popular “snack”, em
Israel. Nunca os tinha comido feitos com favas: paradoxalmente, foi em
Singapura que descobri essa receita faraônica, graças a um jovem cozinheiro
egípcio chamado Ashraf.
Uma verdadeira delícia, que não é muito
difícil nem demora muito a fazer, mas que pede um verdadeiro sortimento de
especiarias e temperos. Foi também numa viagem ao Japão que descobri um
utensílio que, a partir de então, se tornou indispensável para mim. É um
aparelho que corta os legumes em fatias tão finas que ficam quase translúcidas.
O princípio é o mesmo do nosso cortador de legumes clássico, profissional, que
corta em fatias, em rodelas ou em lâminas. Mas esse genial aparelho japonês
permite fazer, à moda mediterrânea, saladas de lascas de legumes que,
mergulhadas na água gelada, tornam-se ultracrocantes.
Partir, mas para onde? Há lugares que ainda
não conheço. Paisagens que ainda não vi. Pessoas que ainda não encontrei. Que
sorte singular é a minha de poder decidir, agora, partir amanhã. Não em busca
de aventura, mas para descobrir. Acho que é um outro aspecto da gula. Mudar de
ares vai ser sempre minha motivação mais forte, e o mundo me deixa sem fôlego.
Comi pedaços de carne excepcionais no Arizona, um cordeiro deleite único, na
Nova Zelândia, e a feira de Hong Kong, literalmente, me deu vertigens: só consegui
conhecer um terço dos produtos apresentados naqueles tabuleiros de cheiros
salobros, fervilhando de coisas esplendorosas com nomes esquisitos.
Certa noite, num lodge sumário no Quênia, onde estava passando as férias, o
cozinheiro preparou uma peça de carne Wellington absolutamente perfeita, numa
caixa metálica coberta, colocada diretamente sobre cinzas e brasas. A vertigem
é a felicidade de saber que existem ainda tantas coisas para conhecer. Mas para
compreender mundos novos e culturas gastronômicas desconhecidas, com suas
tradições e rituais, é preciso tempo.
Absorver, assimilar e em seguida, reinventar.
Na velocidade do som, pode-se ir muito rápido, muito longe. Mas o importante
não é só acumular, amontoar freneticamente lembranças, que serão apenas clichês
se não tivermos o cuidado de cultivá-las. Existe uma espécie de bulimia para
ver tudo, ouvir tudo, em todos os lugares do mundo. É preciso também que haja
uma certa sabedoria em saborear aquilo que o mundo pode oferecer, para fazer
com que os outros também aproveitem. Não por caridade e filantropia naturais,
mas porque sou assim. Gostaria que meus clientes e meus amigos também pudessem
compartilhar aquilo que descubro com excitação, felicidade ou deleite, no outro
extremo do mundo, e viessem ao meu encontro nesses desejos, nesses prazeres nos
quais se unem parte de um e parte de outro.
Não viajo só por viajar; há lugares em que me
sinto muito bem, durante muito tempo, aonde tenho vontade de voltar com mais
frequência do que outros, porque a familiaridade de um lugar me incita a
conhecê-los cada vez melhor, nos seus mínimos detalhes.
É o caso da Provence, essa região simples e
boa, onde as ruas estreitas conduzem ainda hoje a segredos que se valorizam,
antes de se deixarem lentamente saborear. É o caso do País Basco, onde
participo com alegria do renascimento de um restaurante de aldeia, em Bidarray,
com meu amigo Christian Parra. Viajar, seja pela terra natal ou para explorar
as ilhas Seychelles, partir para o Nilo ou passear no México, de hacienda em hacienda, pegar o trem de Bangkok para Cingapura, ou caminhar em
Aragon: o essencial é respeitar o terroir
mental e a geografia, captar a identidade do lugar e seu espírito.
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Leia: Ducasse
de A a Z: um dicionário da cozinha
francesa. Alain Ducasse. Ediouro, 2005.