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Tarefa difícil, para quem tem paixão pelos
livros, é ter que abrir espaço em estantes e prateleiras para que novas obras
que chegam ocupem o lugar das que devem partir. Nessas horas, parece que não
usamos muito a razão e o que determina essa “escolha de Sofia” livresca é mesmo
o apego emocional à coleção.
Há certamente os livros que jamais sairão da
nossa biblioteca particular, os nossos amores eternos, os que nos acompanham
desde a primeira leitura e mesmo que jamais relidos, ficam ali, fazendo-nos
felizes pelo simples fato de existirem e estarem pertinho de nós; há os
clássicos, evidentemente, que também não podem ser assim descartados por
qualquer best-seller da moda, mesmo que você goste mais do Dan Brown do que do
Proust. Por isso aprendi a ser prático: livros da moda ou tomo emprestado ou
nem leio. Se sair o filme então, melhor ainda, resolvo tudo em duas horas e
pronto. Gastar meu tempo de leitura, por hora, só com o que vale a pena.
Há obras que mantenho por questão
intelectual, a maioria delas literatura acadêmica, mais voltadas para o estudo
e há as que guardo por questão estética mesmo: o texto é ruim, mas as gravuras
ou as ilustrações são de primeira, sendo assim, ficam na estante - para os chiques,
na mesinha de centro fazendo pose.
Não vão embora nunca as que fazem parte de
coleções temáticas: minhas obras de Literatura Odepórica, do Ciclo Arturiano,
dos autores beats, coleção cervantina, todas as de poesia, de autores e temas
relacionados às Minas Gerais, e as que separo por autores/as queridos/as, que
nem vou citar porque poucos não são.
Como se vê, na hora de descartar, não sobra
muita coisa, mas ainda assim juntei duas caixas para doação e uma sacolinha com
bons títulos que darei à Miss Cely Blues, jornalista araraquarense que ama os
livros como ninguém nessa terra. Tô te esperando em Sampa, Cé!
E nesse “vai ou fica” de hoje, salvei de
última hora, da caixa dos rejeitados, uma obra misteriosa: sem título, sem
autor, sem nota alguma que possa identificá-la, encadernada naquele bonito tom
de verde musgo antigo, páginas internas em sépia e com ortografia que remete às
primeiras décadas do século passado. Trata-se de uma coletânea, em cuja página
inicial destaca-se o título Primeira
Parte: Prosa; quatrocentas e cinquenta e tantas páginas adiante, outro
título: Segunda Parte: Poesia.
Foi um anjo quem me fez retirar da caixa esse
livro; iria perder um pequeno tesouro, que só fui notar ao folhear mais
atentamente a obra: um compêndio de todos os mais importantes autores da
literatura brasileira do século XIX com notas biográficas e excertos breves de
suas principais obras. Como acredito que nada ocorre por acaso, abri o livro na
página 37 e encontrei uma pequena joia intitulada Tarde Sertaneja, uma passagem da obra Inocência, do Visconde de Taunay que tem tudo a ver com o universo
das viagens.
O Visconde, nascido Alfredo d’Escragnolle
Taunay, foi oficial do exército, professor, político, romancista, historiador e
compositor musical. A nota primordial, a face principal de sua obra é o seu brasileirismo, não só na escolha dos
assuntos e nas descrições e paisagens que pintou, como até na linguagem e na
maneira de escrever: caracteristicamente brasileiro no sentimento e na
expressão. Tudo indica, numa pesquisa rápida pela web, que o Taunay foi um
homem muito bacana e digno.
Você lerá a seguir uma breve passagem de sua
obra mais conhecida, Inocência, onde
o autor descreve um fim de tarde no sertão, presenciado por um viajante que
cruza aquelas áridas terras montado em um cavalo, aventura que o próprio visconde
deve ter vivenciado em suas viagens pelo Brasil. No final do post, deixo um
link para quem tiver interesse em ler uma narrativa de viagem, na íntegra, do
Visconde de Taunay. Até a próxima!
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Tarde Sertaneja
Correm as horas: vem o sol descambando;
refresca a brisa, e sopra rijo o vento. Não criam mais os buritis; gemem, e
convulsivamente agitam as flabeladas palmas. É a tarde que chega.
Desperta então o viajante; esfrega os olhos;
distende preguiçosamente os braços; boceja; bebe uma pouca d’água; fica uns
instantes sentado, a olhar de um lado para outro e corre afinal a buscar o
animal, que de pronto encilha e cavalga.
Uma vez montado, lá vai ele a passo ou a
trote, bem disposto de corpo e de espírito, por aqueles caminhos além, em
demanda de qualquer pouso onde pernoite.
Quanta melancolia baixa à terra com o cair da
tarde!
Parece que a solidão alarga os seus limites
para se tornar acabrunhadora. Enegrece o solo; formam os matagais sombrios
maciços, e ao longe se desdobra tênue véu de um roxo uniforme e desmaiado, no
qual, como linhas a meio apagadas, ressaltam os troncos de uma ou outra
palmeira mais alterosa.
É a hora em que se aperta de inexplicável
receio o coração. Qualquer ruído nos causa sobressalto; ora, o grito aflito do
zabelê nas matas, ora as plangentes notas do bacurau a cruzar os ares.
Frequente é também amiudarem-se os pios angustiados de alguma perdiz, chamando
ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de todo lhe
impossibilite a volta.
Quem viaja atento às impressões íntimas,
estremece malgrado seu ao ouvir, nesse momento de saudades, o tanger de um sino
muito, muito ao longe ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São
insetos ocultos na macega, que trazem essa ilusão, por tal modo viva e
perfeita, que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai
por estes mundos fora a doudejar e a criar mil fantasias.
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Para baixar a obra Cenas de viagem de Visconde de Taunay, clic aqui!