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Viajar é um dos maiores prazeres da vida, poucos hão de discordar.
Ler uma obra bem escrita é tão ou mais prazeroso do que perder-se planeta afora,
afinal a leitura nos conecta com o mundo - real e imaginário - e muitas vezes
viajamos mais e melhor quando lemos do que quando pomos o pé na estrada. Claro que uma coisa não exclui a outra- e o ideal, sempre
que possível e a vida permitir, seria unir as duas atividades.
Impedido de viajar
nas férias, decidi aproveitar o tempo livre para viajar em casa, lendo obras
esquecidas no fundo da estante, folheando, anotando, separando algumas para ler
com mais atenção assim que terminar as leituras em andamento.
Mantenho o hábito de anotar passagens em romances onde o autor
descreve paisagens, lugares e pessoas de maneira peculiar. Tenho a impressão de que na literatura mais
recente faltam escritores que consigam se expressar de uma forma mais poética, escolhendo as palavras certas, tratando a língua com carinho, como
era comum em autores de tempos atrás. É muito gratificante ter em mãos um texto
onde se percebe que o autor se exercitou ao máximo para conseguir transferir
para o papel a beleza capturada pelo olhar.
No texto que você lerá a seguir, escrito em 1870, o
mestre de estilo primoroso, José de Alencar, descreve a paisagem do pampa
brasileiro de forma tão bela que às vezes temos a impressão de estarmos lendo
não um romance, mas um poema acerca das belezas do nosso país. Finda a leitura,
parece que fomos transportados para o sul, e difícil será não ter vontade de
programar, para um futuro próximo, uma viagem ao bioma pampa levando na bagagem essa bela obra de José de Alencar.
♣
O Pampa
Como são melancólicas e solenes, ao pino do sol, as
vastas campinas que cingem as margens do Uruguay e seus afluentes! A savana se
desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e cochilhas, que figuram as
flutuações das vagas nesse verde oceano.
Mais profunda parece aqui a solidão e mais pavorosa do
que na imensidade dos mares. É o mesmo ermo, porém selado pela imobilidade, e
como que estupefato ante a majestade do firmamento.
Raro corta o espaço cheio de luz um pássaro erradio,
demandando a sombra, longe na restinga do mato, que borda as orlas de algum
arroio. A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vai
retouçando alegremente babujar a grama do próximo banhado.
No seio das ondas o nauta sente-se isolado: é o átomo
envolto numa dobra do infinito. A ambula imensa tem só duas faces convexas: - o
mar e o céu.
Mas em ambas a cena é vivaz e palpitante. As ondas se
agitam em constante flutuação: têm uma voz, murmuram. No firmamento as nuvens
cambiam a cada instante ao sopro do vento: há nelas uma fisionomia, um gesto.
A tela oceânica, sempre majestosa e esplêndida, ressumbra
possante vitalidade. O mesmo pego, insondável abismo, exubera de força
criadora: miríades de animais o povoam, que surgem à flor d’água. O pampa, ao
contrário, é o pasmo, o torpor da natureza.
O viandante, perdido na imensa planície, fica mais que
isolado, fica opresso. Em torno dele faz-se o vácuo: súbita paralisia invade o
espaço, que pesa sobre o homem como lívida mortalha.
Lavor de jaspe, embutido na lâmina azul do céu – é a
nuvem. O chão semelha a vasta lápide musgosa de extenso pavimento. Por toda a
parte a imutabilidade. Nem um bafo, para que a natureza palpite; nem um rumor
que simule o balbuciar do deserto.
Pasmosa inanição da vida no seio de um aluvio de luz! O
pampa é a pátria do tufão. Ali, nas estepes nuas, impera o rei dos ventos. Para
a fúria dos elementos inventou o Criador as rijezas cadavéricas da natureza.
Diante da vaga impetuosa colocou o rochedo; como leito do furacão estendeu pela
terra as infindas savanas da América e os ardentes areais da África.
Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se
nelas como o potro indômito; convolve a terra e o céu em espesso turbilhão; afinal
a natureza entra em repouso; serena a tempestade; queda-se o deserto, como
dantes, plácido e inalterável. É a mesma a face impassível; não há ali sorriso,
nem ruga. Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios. A savana permanece como
foi ontem, como há de ser amanhã, até o dia em que o verme homem corroer essa
crosta secular do deserto.
Ao pôr do sol perde o pampa os toques ardentes da luz
meridional. As grandes sombras, que não interceptam montes nem selvas,
desdobram-se lentamente pelo campo fora. É então que se assenta perfeitamente
na imensa planície o nome castelhano. A savana figura realmente um vasto lençol
desfraldado por sobre a terra e velando a virgem natureza americana.
Esta fisionomia crepuscular do deserto é suave nos
primeiros momentos, mas logo após ressumbra tão funda tristeza, que estringe a
alma. Parece que o vasto e imenso orbe cerra-se e vai minguando a ponto de
espremer o coração.
Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que
lhe imprime o cunho da originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que
ela gera e nutre aquela seiva própria; e forma assim uma família a grande
sociedade universal.
Quantos seres habitam as estepes americanas, sejam homem,
animal ou planta, inspiram nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes esta
alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez são indígenas da savana. No seio desta
profunda solidão onde não há guarida para defesa, nem sombra para abrigo, é
preciso afrontar o deserto com intrepidez, sofrer as privações com paciência e
suprimir a distância pela velocidade.
Até a árvore solitária que se ergue no seio dos pampas é
tipo destas virtudes. Seu aspecto tem o quer que seja de arrojado e destemido;
naquele tronco derreado, naqueles galhos convulsos, na folhagem desgrenhada, há
uma atitude atlética. Logo se conhece que a árvore já lutou com o pampeiro e o
venceu. Uma terra seca e poucos orvalhos bastam à sua nutrição. A árvore é
sóbria e afeita às inclemências do sol abrasador.
Veio de longe a semente, trouxe-a o tufão nas asas e
atirou-a ali, onde medrou. É uma planta emigrante. Como a árvore são a ema, o
touro, o corcel, todos os filhos bravios da savana. Nenhum ente, porém, inspira
mais energicamente a alma pampa do que o homem, - o gaúcho.
De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor: tem a
velocidade da ema ou da corsa, os brios do corcel e a veemência do touro,
O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como a
vasta cochilha; a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão: o mesmo
bramido, a mesma pujança. A esse turbilhão de sentimentos, era indispensável
uma amplitude de coração imensa como a savana.
Tal é o pampa.
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Esse texto é um excerto da obra Anthologia Brasileira- collectanea
em prosa e verso dos escriptores nacionaes. Eugenio Werneck. Editora
Francisco Alves, 1918.
Leia: O Gaúcho. José de Alencar. Martin Claret, 2a ed. 2013
Leia: O Gaúcho. José de Alencar. Martin Claret, 2a ed. 2013