“Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu
saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O
caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada
pássaro que voa, cada espécie, tem vôo diferente. Quero descobrir o que
caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada momento. Não há nada igual neste
mundo. Não quero palavra, mas coisa, movimento, vôo.” (1)
É sabido que Guimarães Rosa carregava pendurado em seu
pescoço, um caderninho de anotações onde escrevia tudo aquilo que ouvia e
avistava em suas andanças, longas viagens pelo Brasil e exterior que renderam
obras primas da literatura, como Corpo de
Baile e Grande Sertão: Veredas, narrativas
que abordam de maneira singular o universo do sertão, ou mais exatamente a
região dos campos gerais (Oeste e Noroeste de Minas
Gerias, estendendo-se pelo Oeste da Bahia e Goiás até ao Piauí e Maranhão).
Já ensaiei várias vezes a leitura de Grande Sertão: Veredas, mas somente agora “senti o chamado”, lendo
cada página com a atenção que o texto merece, uma leitura quase contemplativa,
se cabe o termo, tentando mergulhar profundamente no imaginário do sertão, cujo
ambiente guarda paralelos metafóricos com os desertos e as grandes planícies
desabitadas, espaços geográficos que costumam render boa literatura mundo
afora.
Ao começar minha jornada literária nesse universo roseano,
buscando referências para poder fruir melhor minha leitura, descubro um pequeno
livro que foi o impulso que faltava para dar meus primeiros passos pelas
veredas do sertão mineiro: No longe dos
Gerais, do premiado escritor e ilustrador Nelson Cruz.
Essa pequena joia, publicada em 2004, é uma homenagem ao
imortal escritor mineiro, João Guimarães Rosa. Em uma entrevista à jornalista
Cathia Abreu (2), Nelson afirma que o livro “começou a nascer
no dia em que ganhei de presente um exemplar de Manuelzão e Miguilin. Continua:
“A partir da leitura desse livro, comecei a me interessar
pela vida e obra desse autor. Quando soube da história da boiada que ele
acompanhou para conhecer e retratar nas suas histórias, fiquei emocionado e me
perguntei: o que um autor é capaz de fazer para criar a sua obra? Essa pergunta
ficou por muitos anos na minha cabeça até que resolvi sair em campo procurando
pela resposta.”
“(...) Eu precisava de um narrador. Inicialmente, pensei
em narrá-la na primeira pessoa. Li numa entrevista com o vaqueiro Zito ‐ um dos vaqueiros que
acompanhou a viagem de Guimarães Rosa pelo sertão mineiro ‐ que um menino acompanhou a
boiada.
Durante minha viagem de pesquisa à cidade de Três Marias,
em entrevista com Tião Leite, único vaqueiro participante daquela boiada ainda
vivo, ele me confirmou que realmente um menino a acompanhara e que era filho do
capataz e se chamava Nilson. Na última etapa da pesquisa, nos arquivos do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, consultei os
escritos que Guimarães Rosa fez durante essa viagem e encontrei a confirmação
de que precisava: o menino Nilson realmente a acompanhara. Com essa
confirmação, conduzi a história tendo o menino como narrador anônimo da boiada.”
“(...) Para levantar informações sobre esse acontecimento
reli vários livros de Guimarães Rosa e viajei aproximadamente por dois mil
quilômetros fotografando, desenhando, conversando e, principalmente, fazendo
anotações. Além disso, consultei mapas, visitei fazendas e fiz muitas leituras
em bibliotecas.”
No
longe das Gerais é um relato de viagem sob a ótica de um
menino de nove anos que acompanha a condução de uma boiada pelo sertão mineiro,
no que seria seu “batismo de boiada”; não se trata de um rito de passagem, embora
sob certos aspectos até pudesse ser o caso, mas não há esse enfoque no relato
do Nelson.
Arriscaria dizer que o autor-viajante tentou, percorrendo
a rota outrora cavalgada pelo famoso escritor mineiro, aproximar-se o mais
fisicamente possível de Guimarães Rosa - ou João Rosa, como é chamado pelos
companheiros da boiada; essa busca é de certa forma uma necessidade fetichista
que temos de nos apoderarmos de algo ou alguém que admiramos profundamente,
rendendo culto à memória de um lugar ou de uma pessoa estimada. Percorrer os
passos de um escritor, de um poeta ou artista que admiramos equivale, guardadas
as diferenças, à peregrinação aos lugares sagrados.
O mais encantador
na maneira de escrever do Nelson é que apesar de o narrador ser uma criança, seu
vocabulário nunca soa infantil, o que facilita a empatia com o personagem; ao
invés de nos afastar de seu universo infante, como meros espectadores
distantes, ele nos aproxima de sua experiência, ao ponto de quase esquecermos
que se trata do olhar de uma criança sobre o mundo dos adultos:
“(...) no meu silêncio, estou sempre de olho no que os
vaqueiros fazem. Chamam-me de aprendiz e é isso o que sou na verdade. Ainda não
sei muito da vida vaquejada, mas, nas caçadas, vou silencioso e atento para não
espantar os bichos. Ao redor das fogueiras, nas noites escuras, ouço atento as
histórias sem fim.”
Há muitas passagens no livro que merecem destaque; houve o cuidado, percebe-se, com a construção das frases, com os diálogos, com as descrições geográficas que se descortinam diante de nossos olhos enquanto a boiada segue seu destino sertão adentro. Há momentos singelos, como os que o narrador descreve as atitudes e singularidades do João Rosa, como uma testemunha ocular que de fato existiu, mas que esquecida no tempo só pode voltar à vida na imaginação do escritor.
Há muitas passagens no livro que merecem destaque; houve o cuidado, percebe-se, com a construção das frases, com os diálogos, com as descrições geográficas que se descortinam diante de nossos olhos enquanto a boiada segue seu destino sertão adentro. Há momentos singelos, como os que o narrador descreve as atitudes e singularidades do João Rosa, como uma testemunha ocular que de fato existiu, mas que esquecida no tempo só pode voltar à vida na imaginação do escritor.
Há momentos alegres e divertidos, mas também cenas
sutilmente melancólicas que dão o equilíbrio exato à narrativa. As ilustrações
do autor complementam muito bem a história contada, e agora, relendo o romance
para escrever esse texto, percebo que o Nelson pintou seus quadros como se
fosse a visão do garoto narrando as cenas que se descortinam durante a
travessia do serrado. Lindo isso.
Escolhi transcrever o depoimento de Nelson Cruz que
aparece no final do livro porque mostra a importância, o papel fundamental que
a viagem pelo sertão, seguindo os caminhos trilhados pelo mestre Guimarães Rosa,
teve na elaboração da escrita desse romance inspirador que enriquece nossa
literatura odepórica brasileira.
♣
Depoimento do autor
Entre as várias imagens que me são sugeridas por fatos,
leituras, observações e que acabam se estabelecendo no meu inconsciente eu
tinha essa: João Guimarães Rosa montado na mula Balalaika nas paisagens do
sertão mineiro acompanhando a boiada de Chico Moreira.
Assim que a imagem de Guimarães Rosa saltou à minha
frente, pedindo vez, as ideias começaram a fervilhar. Saí pelo mesmo sertão
procurando respostas que me levassem a uma passagem para contar essa história.
Em meio às leituras dessa boiada, encontrei uma entrevista do vaqueiro Zito na
qual ele afirma que um menino havia acompanhado a boiada por todo o percurso e
não havia sido citado na reportagem da revista O Cruzeiro. Foi um verdadeiro achado para mim.
Essa informação foi suficiente para que começasse o
relato da condução da boiada segundo a visão desse personagem anônimo: um
menino de aproximadamente nove anos. Posteriormente, obtive a confirmação desse
depoimento do Zito com Sebastião de Morais Leite, o Tião Leite, único dos
vaqueiros que participou daquela viagem ainda vivo. Ele não só confirmou a
informação como revelou que o menino se chamava Nilson e era filho do capataz
Manelão, como é chamado na região de Três Marias o vaqueiro Manuelzão.
Infelizmente, Nilson faleceu em 1993 e Manuelzão em 1997. Consultando os
familiares, a resposta foi curiosa: Manuelzão e Nilson, nunca mencionaram sua
participação nessa viagem. Tive, então, um momento de insegurança quanto a
conduzir a história sob a narração desse personagem.
Em consulta às cadernetas de Guimarães Rosa, nos arquivos
do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo,
encontrei a confirmação que precisava: Rosa anotou que Nilson não acompanhou a
boiada até o final: na altura da Vereda Comprida, pouco antes de chegar a
Andrequicé, ele retornou para a fazenda Sirga acompanhado dos vaqueiros Quim e Levindo.
Os motivos que levam a essa contradição entre os vaqueiros, que afirmam que o
menino acompanhou a boiada até o final, e o escritor não me pareceram
relevantes.
Depois de somados quase dois mil quilômetros viajados
para as pesquisas, de tudo eu fiz um muito: conheci e conversei com pessoas que
me foram abrindo as “porteiras” para este livro: desenhei fazendas, paisagens e
bois desconfiados; registrei em aproximadamente quatrocentas fotografias os
lugares por onde a boiada de Chico Moreira passou.
Alguns trechos e fazendas não existem mais. Foram
destruídos pelo tempo; estradas mudaram de direção para cultivo de eucalipto e
implantação de carvoarias. Isso modificou quase que completamente a região,
apagando grande parte do percurso dessa boiada. Felizmente, Guimarães Rosa
reconheceu o valor daqueles vaqueiros e uma cultura que estava perto de se
extinguir.
Em No longe dos Gerais procuro colocar a minha admiração
pelo empenho desse escritor que cavalgou duzentos e quarenta quilômetros
montado numa mula e que em onze dias de viagem conviveu e anotou tudo o que via
e ouvia ao seu redor para criar sua obra. Esse gesto me inspirou.
Não posso deixar de lembrar que no grupo de vaqueiros
havia outras pessoas que se dedicavam à poesia, como Bindóia e Zito. Cada um
deles tinha seus cadernos de anotações.
Desenhar a condução dessa boiada é, antes de tudo, uma
homenagem ao notável escritor. Meu intuito é registrar em imagens pessoas que
tomam atitudes inusitadas para um dia criar uma obra.
Se isso é entendido ou não como processo criativo acho
que pouco importa. No final, Guimarães Rosa demonstra que atitudes como a que
tomou são, acima de tudo, atitudes de vida.
Leia: No longe dos Gerais: a história da condução de uma
boiada no interior de Minas. Texto e ilustrações de Nelson Cruz. Ed. Cosac & Naify, 2004.
♣
(1) (Pedro Bloch entrevista Guimarães Rosa, Revista Manchete, 15/06/1963)
(2) A entrevista do autor à jornalista Cathia Abreu pode ser
acessada em http://chc.org.br/a-arte-de-escrever-e-desenhar/