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Faz pouco tempo, li uma obra que me agradou
muito pela maneira simples com a qual a escritora, Isabel Huggan, relata suas
viagens e experiências de vida fora do Canadá, seu país de origem. Casada com
um homem cujo trabalho o obrigava a viajar muito, Isabel partiu do Canadá, já
na meia idade, para viver em lugares marcantes como a Tanzânia, as Filipinas, o
Quênia e o sul da França, onde acabou estabelecendo moradia definitiva- com a
condição de poder voltar, uma vez ao ano, à sua terra natal para visitar amigos
e familiares.
A narrativa da autora canadense explora algo
que aprecio bastante nos relatos de viagem que costumo ler e indicar: as
relações humanas e uma atitude de reverência à cultura alheia, conduta esperada
de todo bom viajante.
Dois momentos me chamaram a atenção durante a
leitura de Belonging: home away from home
(algo como Pertencimento: lar distante do
lar). É justamente no título da obra que aparece o questionamento mais
interessante de Isabel sobre suas viagens e o fato de viver em países longes e
ao mesmo tempo tão diferentes de sua origem: o que é o lar, aquilo que chamamos
de nossa casa, nosso lugar?
Seus questionamentos, que abrem a leitura,
começaram quando ela parou para refletir que na língua francesa não existe um
vocábulo que expresse o sentido da palavra lar,
como o home do inglês, sua língua
nativa. Fácil de entender, o mesmo acontece na nossa língua portuguesa, basta
pensar nas palavras “casa” e “lar”, cujos significados parecem iguais
dependendo do contexto em que são usados, mas que diferem bastante num sentido
mais amplo.
A questão que ela levanta em suas memórias-
disfarçadas em relatos de viagem- é que nunca sabe como se expressar quando
quer dizer a alguém, na França, que no final do ano irá visitar sua casa (going home), quando na verdade sua casa
é na França. É que em francês, o sentido de lar- daí o termo pertencimento que aparece no título da
obra, inexiste, de modo que maison ou
chez não conseguem traduzir com
fidelidade a ideia de lar, porque são palavras que definem uma localidade
física, isentas de significados emocionais agregados à ideia de lar.
A palavra lar tem uma origem muito bacana: os
lares eram os nomes dos deuses
romanos que protegiam as casas, por extensão as famílias; no latim, lare é a parte da casa onde se acende o
fogo, daí o termo lareira. Portanto, o lar é um lugar ao qual pertencemos, onde
reunimos nossa família e onde construímos nossa identidade.
A autora trabalha essa ideia na seguinte
passagem:
Durante
os anos passados fora do Canadá, eu vivi de acordo com algo que li numa
entrevista com o cirurgião Chris Giannou: “O lar não é uma entidade física,
geográfica. O lar é um estado moral. O verdadeiro lar são as amizades de cada
um. Gosto de pensar nisso como uma forma elevada de organização social
diferente do estado nação.”
Com
meus pais falecidos e sem ter uma casa para a qual pudesse voltar ao Canadá,
essa visão me deu muito conforto pelos anos que passei expatriada no exterior,
pelo que mantive em mente a ideia de que eu e meu marido estávamos “somente
vivendo de aluguel temporariamente” por causa do seu trabalho, e que meu
verdadeiro lar estava em qualquer lugar, invisível mas estável – e permanente.
Em
outro momento interessante da leitura, Isabel descreve aquela sensação estranha
de despertarmos numa cama sem saber onde estamos ou como chegamos ali, tipo de
acontecimento comum que muitos viajantes e imigrantes sentem por um período de
tempo, quando a cabeça ainda não acompanha os compassos do coração; é um estar
em casa sem de fato sentir-se em casa.
Às
vezes acordo de manhã cedinho antes de clarear e naquele silêncio noturno me
pego pensando: como foi que cheguei até aqui? Mas não há nada de misterioso, a
razão é bem mundana – não é a vontade de Deus, mas o desejo de um escocês com o
qual tenho estado casada desde 1970.
A
primeira vez que nós viemos caminhar por essas montanhas, há mais de dez anos
quando ainda vivíamos em Montpellier, ele disse, abruptamente, que sabia que
seu lar estava ali na região montanhosa de Cévennes. Sua experiência foi intensa,
afetando-o de uma maneira profundamente atávica que só pude compreender mais
tarde, quando senti a mesma sensação magnética e um impulso quase hormonal no
momento em que pus os pés na Tasmânia e soube que havia encontrado o meu lar.
Quando
isso acontece, esse reconhecimento carnal de uma paisagem, tem-se a mesma
sensação de se apaixonar sem saber o porquê, e esse sentimento irracional e
inexplicável torna tudo muito mais intenso... a sensação do ar, a configuração
da terra, a cor e o formato do horizonte, quem vai saber? Há lugares no planeta
aos quais pertencemos e eles não ficam necessariamente no local onde nascemos.
Se
tivermos sorte, se os deuses estiverem de bom humor, nós os encontraremos, pelo
tempo que for necessário para descobrirmos que, sim, nós pertencemos ao lugar e
ele a nós. Mesmo que nós não possamos articular essa intensa sensação física,
mesmo que a língua seja um empecilho, nós sabemos e sentimos em nossa carne que
ali é o nosso lar.
Colecionando pedras
Recolho a seguir um fragmento da obra de Isabel
que trata de um tema muito caro àqueles que viajam com frequência: a mania de
trazer souvenires ou itens colecionáveis de cada lugar que se visita. Há quem
colecione colherinhas, chaveiros, miniaturas, bibelôs de bichinhos que vão de
sapos a elefantes, de fadas a unicórnios e tudo o que a imaginação e a loucura
de cada um permitir.
Confesso que tive algumas manias do tipo, de
selos a folhas secas, marcadores de livros a moedas, de conchas a
caleidoscópios (esses ainda teimo em colecionar) e outras inutilidades
parecidas. A pior certamente foi a de trazer pedras de todos os cantos pelos quais
passava, às vezes dois quilos de pedras na mochila, algo que só não me parece
insano hoje porque realmente sou apaixonado por elas, desde muito pequeno, talvez
pelo sonho não realizado de um dia me tornar arqueólogo. Nossas frustrações
sempre hão de aparecer em algum lugar, disso ninguém foge.
Com o tempo vamos aprendendo a trabalhar o
desapego das coisas materiais, seja por uma questão interior, de cunho
espiritual, ou por uma questão prática mesmo, que envolve a falta de espaço, o
tempo desperdiçado para organizar as tralhas e por aí vai.
Diz a Isabel que desde pequenina tinha paixão
por pedras, que ela chamava de fósseis, e que se lembra de caminhar pela praia
colhendo pequenas rochas com seu pai, que a ensinou a “enxergar as pedras no
mundo e o mundo nas pedras”. Com o tempo, a coleção cresceu consideravelmente
até que um dia foram descartadas. Mas, diz ela, “eu ainda coleciono pedras e
conchas, porque parece que não sou eu mesma até que tenha alguns pedacinhos do
planeta ao alcance de minhas mãos”.
Diz que ganhou de um amigo de seu pai, ainda
na infância, uma pirita, aquele minério de ferro dourado, muito bonito, também
conhecido como “ouro de tolo”. Faz uma divagação interessante, dizendo que
certa feita, ao segurar o pequeno minério em suas mãos, se pegou pensando se
ela própria às vezes não fazia papel de tola ao se deixar encantar pelos
“brilhos” que a vida oferece. Quantos
de nós também nos deixamos iludir?
Apesar de detestar a pirita, Isabel a mantém
guardada por mais de cinquenta anos, sem entender direito por que nunca a
descartou mesmo tendo mudado tanto de casa todos esses anos. Talvez a
explicação se encontre no que escreveu a seguir:
Algo
acontece com os objetos que guardamos, mesmo com aqueles que não amamos. Eles
adquirem uma pátina de legitimidade, uma dignidade conquistada pela longevidade
que se torna impensável jogá-los fora. Além disso, eu sei que se tivesse me
livrado da pirita ela ficaria brilhando lá no lixo, radiante, me atormentando
como um elemento cósmico, tal como nas histórias de HQ, até que eu
obedientemente fosse lá buscá-la de
volta junto a mim.
Qual
o significado dessa pedra, desse ouro de tolo? Bem, acredito que quando eu
souber a resposta, ela se permitirá perder. Há alguma lição guardada para mim
nesse pequeno pedaço de metal e enquanto eu necessitar dessa lição, devo
manter essa coisa comigo.
Pedras,
conchas, lembrancinhas, tudo isso desordena as superfícies das casas por onde
passo a viver; minha escrivaninha está lotada de tigelas chinesas, latas
esmaltadas, caixinhas de madeira e cestinhos de palha, louça antiga, vidros
coloridos e cartões telefônicos. Como posso justificar essa bagunça?
Em
seu ensaio “A moral das coisas”, Bruce Chatwin escreveu que “os objetos têm um
jeito de se insinuarem nas vidas humanas; algumas pessoas atraem mais coisas do
que outras, mas nenhuma pessoa, por mais desprendida que for, é totalmente
desapegada das coisas. Um chimpanzé usa varas e pedras como ferramentas, mas
ele não mantém posses. O homem sim. E as coisas pelas quais ele mais se mantém
apegado não servem a nenhuma função. Ao contrário, elas são símbolos, ou âncoras
emocionais. A questão que eu gostaria de levantar (sem a necessidade de se
obter uma resposta) é: Por que os verdadeiros tesouros do homem são inúteis”?
Uma
pena que Bruce tenha falecido, porque eu teria respondido sua pergunta com
outra: quem pode dizer o que é “útil” ou não? Eu considero essas coisas ao meu
redor úteis – os complexos motores da memória, feito máquinas poderosas. Uma
pedra parece ser apenas uma pedra, mas dentro dela se encontra uma energia
pulsante: não é uma âncora, mas uma embarcação.
Eu fico com o Bruce, e acho que
a Isabel não absorveu direito o que leu, porque está claro quando ele afirma que
as coisas atuam num plano simbólico e em assim sendo as coisas que guardamos
são como muletas que usamos para ajudar na caminhada. No caso da autora
canadense, a pedra a que ela se refere é sim um objeto inútil- mas inútil num
sentido prático. É isso o que Chatwin quis dizer.
Acredito que quando trazemos algo na volta ao
lar, seja um galho seco, uma concha, pedras ou as lembrancinhas comuns made in
China das lojinhas de souvenires, o
que estamos de fato fazendo, de maneira intuitiva, é materializar um momento de
felicidade em um objeto que manteremos por um tempo à nossa vista, como
lembrança/recordação dos dias felizes ou especiais que ficaram para trás. E o engraçado é
que a maioria deixa de ter significado algum tempo depois, e o que era um
objeto estimado passa a ser um elemento kitsch, até vergonhoso, que precisará ser descartado na primeira
oportunidade.
Vejo a mesma coisa acontecendo com as
fotografias, quando voltamos de viagem com mais de mil fotos na máquina... será
mesmo que precisamos de tantas provas daquilo que vivemos? Me pergunto onde
estava o foco da pessoa enquanto
clicava sem parar o bonito cenário que a cercava. Na máquina?
Minha pedra filosofal (fragmento final)
Alguns
objetos sempre levo comigo num saquinho azul que carrego quando viajo. Eles
também podem existir na mente da deusa que determina onde e como as estórias
nascem: uma semente escarlate seca, um pequeno canivete, um caco de cerâmica
cretense, dois dentes de bebês, e um chaveiro atado à uma caixinha de música
pequenina que tilinta os primeiros acordes de “Für Elise”. Meu pai a comprou
para minha mãe em Beijing, um ano antes de seu falecimento. Também levo uma
sodalita polida, tão azul quanto um lápis lázuli, que foi colocada em minha mão
Há muitos anos por um professor de filosofia que amei até a sua morte. Eu ainda
o amo, ele ainda visita meus sonhos. Minha pedra filosofal. Minhas estórias.
Isabel
Huggan
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Belonging: home away from home. Isabel Huggan. Alfred A. Knopf. Publisher.
Canada, 2003.