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Terminei de ler uma obra estimulante - uma
biografia – da Karen Armstrong, famosa escritora britânica especialista na
temática da religião. Eu conhecia os textos da Karen apenas sob o ponto de
vista acadêmico, quando li na faculdade uma obra dela que versava sobre o
islamismo, O Islã, merecedora de muitos elogios e sem
dúvida uma excelente porta de entrada para o universo dessa religião ainda
muito mal compreendida.
Em A
escada espiral, seu livro de memórias, Karen Armstrong escreve sobre a sua
vida desde o momento em que decide, ainda muito jovem, entrar para um convento
com a firme convicção de encontrar Deus e viver a sua fé nele de maneira
integral, junto a seus pares, por los
siglos de los siglos, amém. Mas nada
disso acontece e, além de não encontrar Deus na clausura, a moça deixa a ordem
menos crente do que quando havia ingressado. Daí em diante você terá que ir
atrás por conta própria, porque a vida da Karen realmente merece um livro. Ou
vários.
Não é propriamente sobre a Karen Armstrong
que vou escrever, mas foi uma passagem de suas memórias espiraladas que me fez
querer escrever sobre outra obra que li também recentemente e que fala sobre
uma viagem, mas uma viagem no sentido mais simbólico do termo. Trata-se de um
pequeno livro intitulado O cavaleiro
preso na armadura, que ganhei de um grande amigo peregrino e que li de uma
tirada só, comendo páginas feito traça de papel.
A história, escrita por Robert Fisher, é uma fábula para quem busca a Trilha da Verdade
(subtítulo da obra). Como todas as fábulas, você tem a impressão de estar
diante de uma leitura voltada para o público infanto-juvenil. Mas, assim como o
herói dessa história, é preciso enxergar o mundo para além das aparências- o
que parece ser apenas um discurso bonito, mas na verdade nada mais é do que um
grande ensinamento que implica, sobretudo, no confronto desconfortável com o
próprio ego, uma dura batalha em se tratando de uma sociedade narcisista e
ególatra como a atual.
Em poucas linhas, a narrativa gira em torno
de um cavaleiro desses de conto de fadas que percorre caminhos em busca de
aventuras: matar dragões, lutar contra inimigos, resgatar donzelas em apuros,
tudo o que faz parte de nosso imaginário medieval. Para além de suas destrezas,
o cavaleiro era conhecido mesmo por conta de sua armadura, tão linda e
brilhante que, quando partia para a batalha, “os aldeões podiam jurar que
tinham visto o sol nascer no norte ou se pôr no leste”.
O cavaleiro tinha uma esposa, um filho e um
castelo bacana, mas andava sempre tão ocupado em estar pronto para lutar em
alguma batalha que mal conseguia dar atenção à sua família; sua fixação em
estar sempre pronto para partir o levou a viver constantemente vestido com sua
armadura até que chegou um dia em que não mais conseguia tirá-la. Como sua
esposa já não mais aceitava conviver com essa situação, acreditando que o
marido não tirava a armadura porque não queria - e não porque não conseguia -,
o cavaleiro resolveu partir e só voltaria ao castelo depois que conseguisse se
livrar da prisão de sua própria armadura.
O chamado da busca, portanto, fica claro no
conto: é preciso partir para encontrar uma solução, uma vez que a “cura” só é
alcançada no exílio; é o afastamento que promove a transformação, que facilita
a busca de uma solução que só chega quando nos encontramos distanciados daquilo
que nos faz sofrer ou que nos impede de enxergar, que é bem o caso do cavaleiro
dessa fábula.
É aqui que entra a Karen Armstrong, fazendo a
ponte que une o conto do cavaleiro com o mito do herói, bem ao estilo do Joseph
Campbell. Diz a Karen que os grandes mitos mostram que quem segue rumo alheio
acaba se perdendo. E prossegue:
“O herói tem de partir sozinho, abandonando o
velho mundo e os velhos hábitos. Tem de aventurar-se na escuridão do
desconhecido, onde não existe mapa nem caminho visível. Tem de combater seus
próprios monstros – não os monstros de outrem -, explorar seu próprio
labirinto, sofrer sua própria provação para poder encontrar o que lhe falta.
Assim transfigurado, pode levar algo de valor para o mundo que ficara para
trás.”
“Todavia, se o cavaleiro percorre uma rota já
estabelecida, está apenas seguindo pegadas alheias e não viverá uma aventura.
Se quer triunfar, tem de entrar na floresta, diz o texto, em francês arcaico,
de A busca do Santo Graal, ‘num ponto
em que ele mesmo escolheu, onde a escuridão era maior e não havia caminho’. Na
terra árida da lenda do Graal, as pessoas levam vidas inautênticas, cumprindo
cegamente as normas da sociedade e fazendo só o que os outros esperam delas.”
Voltando ao conto, o cavaleiro decide
procurar o rei antes de entrar na floresta, mas este se encontrava ausente, participando
de uma nova cruzada; quem lhe informa isso é um bobo da corte, que estava
sentado junto à ponte levadiça do castelo. No breve diálogo que se segue entre
os dois, o cavaleiro descobre que a única pessoa que pode lhe ajudar é o Mago
Merlin, que o bobo garante estar vivo, morando “nas florestas além”. E tudo
isso acontece no primeiro dos sete capítulos do livro.
Só vou adiantar, para não estragar a
surpresa, de que o cavaleiro de fato encontra Merlin na floresta, depois de
muito tempo buscando seu rastro; é o mago quem lhe oferecerá a chave que o
libertará de sua armadura, mas toda liberdade tem um preço. A incumbência que
Merlin dá ao cavaleiro é a seguinte: ele terá que trilhar, a pé, o Caminho da
Verdade, tendo como companhia um esquilo e um pássaro; nesse caminho terá de
atravessar três castelos que bloqueiam seu passo: o primeiro castelo chama-se
Silêncio, o segundo Conhecimento e o terceiro, Vontade e Ousadia.
O conto se desenrola à maneira das fábulas de
antigamente, que dizem muito além daquilo que se percebe na aparência
superficial dos lugares comuns e finais felizes; estão lá os velhos chavões, os
mesmos vícios de linguagem dos contos infantis, as mesmas morais revestidas de
autoajuda, mas nada disso importa. A mensagem é mais forte do que qualquer uma
dessas convenções e quem não liga para isso se diverte muito mais.
A fábula de Robert Fisher tem força
suficiente para comover o leitor que busca uma leitura singela, sem grandes
pretensões literárias – mesmo porque a intenção do autor seguramente foi a de
fazer com que sua história tocasse o leitor num nível mais profundo, fazendo-o
pensar em sua própria condição de “cavaleiro preso em uma armadura”, metáfora
apropriada que cabe, em algum momento, na experiência de vida de todos nós.
De fato, cada pessoa fará sua própria
interpretação do texto, uma vez que a linguagem metafórica possui essa
liberdade interpretativa. O que representa uma armadura para você? O que você
entende por liberdade? Qual a importância do amor em sua vida? Qual a sua
busca? São questões como estas que o autor se propõe a responder nessa fábula,
na verdade um apanhado sucinto dos ensinamentos do grande estudioso Joseph
Campbell, que dedicou toda sua vida à compreensão da busca humana tendo como chave de interpretação os mitos das mais
diversificadas culturas e religiões do planeta.
A Karen Armstrong, ao se recordar de seus
estudos religiosos, disse que estes lhe mostraram que a busca (religiosa) não
tem a ver com descobrir “a verdade” ou “o sentido da vida”, e sim com viver, de
maneira mais intensa possível, no aqui e agora; não se trata de cultivar uma
personalidade sobre-humana ou ir para o céu, mas de descobrir como ser inteiramente humano. Essa ideia
casa-se perfeitamente com o cavaleiro preso na armadura, daí a minha surpresa
ao pegar-me lendo ao mesmo tempo duas obras tão distintas e encontrar em uma
delas passagens que afirmam e amplificam a linguagem simbólica da outra. Uma
coincidência muito bem-vinda.
Finalizo com a Karen, que em poucas palavras
dá uma aula de como uma obra como a do cavaleiro de Robert Fisher pode nos
ajudar a reinterpretar a vida e, quem sabe, colocar em prática as tarefas
necessárias para uma mudança integral que nos leve em direção ao equilíbrio e à
paz interior.
“Os mitos e as leis da religião são
verdadeiros não porque se coadunam com uma realidade metafísica, científica ou
histórica, e sim porque enaltecem a vida. Contam como a natureza humana
funciona, mas, para descobrir sua verdade, é preciso aplicá-los à própria
existência e colocá-los em prática. Os mitos do herói, por exemplo, não
surgiram para nos fornecer informações históricas sobre Prometeu ou Aquiles –
nem sobre Jesus ou Buda. Seu objetivo é compelir-nos a agir de tal modo que
revelemos nosso próprio potencial heróico.”
♣
Leia:
O
cavaleiro preso na armadura: uma
fábula para quem busca a Trilha da Verdade. Robert Fisher. Ed Record, 2012.
A
escada espiral: memórias.
Karen Armstrong. Companhia das Letras, 2005.
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