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Uma das coisas que mais me motivam a
pesquisar a literatura odepórica é o fato de que você nunca sabe o que vai
encontrar pela frente; de fato, em se tratando de narrativa de viagem, qualquer
cena pode servir como ponto de partida para uma boa história e o que torna um
relato de viagem mais interessante do que o outro é o fator surpresa, não tanto
pelo desfecho senão pela estranheza ou peculiaridade do tema. Por exemplo, o
Luigi Monga, que foi um estudioso brilhante da literatura odepórica, editou
duas obras que serão referência por muitas décadas na área das narrativas de
viagem e entre seus achados odepóricos a gente encontra o olhar do viajante sobre
os temas mais variados e, por vezes, insólitos.
Lembro-me de um texto, parte dessa coletânea
editada pelo Monga, em que o autor (Andrés Zamora) gasta muitas linhas para nos
informar que, na experiência da viagem, o componente excremental ocupa um lugar
relevante. Nesse paper, intitulado Odiseas excrementales (original em
espanhol) o Andrés relembra que no período renascentista um dos ensinamentos
dados aos viajantes era o de praticar uma evacuação geral antes de se colocar
os pés na estrada. Cita a obra Ulysses,
de James Joyce, dizendo que o personagem principal, Leopold Bloom, inicia sua
odisseia urbana depois de uma prazerosa e frutífera visita ao banheiro. E por
aí vai, um dia traduzo o texto na íntegra porque não há quem não goste de um
tema escatológico de vez em quando. Bom, eu adoro.
E eis que encontro, num caderno de turismo da
Folha de São Paulo, um artigo supimpa
do J.P.Cuenca narrando suas experiências no estrangeiro focando as barbearias e
os salões de cabelereiros que visitou em suas deambulações por Madri, Berlim e
Buenos Aires. É um relato gostoso de ler, e o que poderia parecer uma leitura
desinteressante se revela uma prazerosa aventura literária, mostrando que, em
se tratando de viagens, qualquer lugar pode ser um cenário para experiências
divertidas e inovadoras, como os salões e as barbearias retratadas pelo J.P.
Cuenca no texto que você lerá a seguir. Namastê!
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Turismo
capilar
Nos últimos anos, uma rotina de viagens cada
vez mais longas fez com que eu passasse a cortar o cabelo sempre fora do
Brasil. Abandonei a estável relação que tive com barbeiros de nomes como
Péricles e Kléber para aventurar-me na roleta da tesoura desconhecida. Como
certa vez escreveu Alan Pauls, "cada salão que não se conhece e no qual se
aventura é um perigo e uma esperança, uma promessa e uma armadilha".
Destaco aqui alguns relatos desse constante flerte com a desaparição.
Madri
No boêmio bairro de Malasaña, fica a Corta
Cabeza. Descendo pela Corredera Baja de San Pablo, depois de um lauto almoço e
alguns mojitos, vejo a fachada em estilo industrial e decido entrar. Sou sempre
atravessado pela decisão de cortar o cabelo na viagem de forma imperiosa, como
se vivesse um daqueles raros momentos de iluminação. A certeza que acompanha
cada passo. Eles tinham horário, era o meio de uma tarde calorenta de
terça-feira.
Quem lavou a minha cabeça foi uma bela
travesti filipina com 1,80 m e mãos firmes. Meditar de olhos fechados enquanto
um desconhecido entrelaça os dedos pelos seus cabelos molhados com água quente
e xampu é um dos grandes prazeres da vida, inclusive superior à toalha morna
que antecipa o toque da lâmina no rosto. Meu barbeiro foi um anão. Quando
sentei na poltrona de couro negro, seu rosto ficou exatamente na altura da
minha cabeça. Atmosfera almodovariana à parte, foi o melhor repicado que tive
em anos. A Corta Cabeza diz em seu site (cortacabeza.com): "Somos fabricantes
de beleza". Digamos que, em mim, eles tentaram com bravura.
Berlim
O Bernardo Carvalho já escreveu sobre ele,
mas creio que o conheci primeiro. Trata-se do barbeiro comunista de Neuköln,
cujo negócio tem como símbolo a foice e a tesoura no lugar no martelo. O lugar
fica no coração do bairro de imigrantes turcos e árabes, centro do
aparentemente inesgotável debate sobre gentrificação que domina a cidade. É um
salão com apenas uma cadeira, paredes desbotadas e quadros "naïf"
francamente horríveis pendurados na parede. Quando perguntei em inglês se ele
tinha horário, me olhou com má vontade e disse: "Volte às seis da tarde. E
lave o cabelo!".
Três horas depois, lá eu estava de novo,
sentado com um lençol branco sobre o colo ouvindo um disco de rock industrial.
O homem, um tipo de 45 anos, camiseta rasgada e cabelos esvoaçados, se
desentendeu com o cortador elétrico e jogou-o no chão. Gritou com a assistente,
que, desconfio, também era sua mulher. Chutou um balde de lixo no cachorro que
dormia esparramado num canto. O cachorro latiu. Como eu não falo alemão, sorri
em desespero. Depois, o homem monologou contra Berlim, a Alemanha, os turistas,
os preços dos aluguéis e o aburguesamento do bairro enquanto gentrificava
minhas madeixas com um corte à la Playmobil. Conversamos sobre música e arte
contemporânea. Escrevendo este texto, descubro em obituário do jornal
"Tagesspiegel" que ele morreu em agosto deste ano. Enfartou com a
tesoura na mão.
Buenos
Aires
O Rojo é o salão hipster quase-fora-de-moda
da cidade, onde estrelas do rock e "wannabes" em geral cuidam de seus
mullets e franjinhas há duas décadas. O Rojo original fica em Caballito, mas
para usufruir do espetáculo completo, recomendo a unidade de Palermo Viejo, na
Calle Malabia 1.931. Após a lavagem -no teto, telas exibiam um clipe hipnótico
e sensual que se repetiu dezenas de vezes-, uma diligente funcionária me levou
pela mão até a sala principal. Ali está a magia do lugar. As duas paredes de
espelhos, cortadas por faixas de LED em movimento multicolor, refletem-se num
jogo infinito. De cada lugar, você é capaz de ver seu rosto e suas costas,
assim como o rosto e as costas de todas as outras pessoas, tudo multiplicado
até a dissolução. É como entrar dentro de um caleidoscópio.
Se nas milongas e cafeterias de Buenos Aires
os espelhos evocam metafísica, esse aquário de reflexos desperta curiosidades e
tremores em partes inferiores do abdômen. Enquanto sentem a suave mordida da
tesoura contra seus couros cabeludos, os clientes portenhos se miram. E se miram.
E se miram. E se miram.
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Fonte: Folha de São Paulo