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Numa
senda em que são poucas as mulheres que se aventuram, causa surpresa encontrar uma
dama publicando narrativas de viagem. Seu nome merece destaque: Martha
Medeiros, gaúcha de escrita saborosa, autora de vários livros de crônicas e
poesias que você que gosta de ler já deve ter visto naqueles totens da editora
L&PM. Se não viu, procure ver, há sempre muita coisa boa nos pockets dessa simpática editora.
Da
Martha eu nunca havia lido nada; para dizer a verdade, eu achava que ela era
uma escritora portuguesa, sei lá o motivo, e que escrevia livros voltados exclusivamente
ao público feminino, o que não é o caso, uma vez que sua maneira de observar o
mundo não se limita ao temido (pelos homens, claro) universo feminino, se é que
isso realmente existe.
Mas
eis que uma amiga me deu uma caixa cheia de livros usados e entre eles havia
dois títulos da Martha: Topless e Trem-bala, ambos coletâneas de crônicas
que a autora publica nos jornais O Globo e Zero Hora. Como gosto muito do gênero,
separei-os para ler no metrô, que pede uma leitura mais descompromissada, uma
vez que viajo poucas estações diariamente na ida ao trabalho.
Vou
lhe contar: adorei os textos da Martha, mulher inteligente e com ótimo senso de
humor – coisa melhor não há. Gostei tanto que nem pensei duas vezes antes de
comprar seu mais recente trabalho, Um
lugar na janela – relatos de viagem, deliciosa reunião de narrativas das
viagens que a autora fez em diferentes fases da vida.
Estão
lá as clássicas mochilagens pela Europa, de uma viajante nos seus vinte e
poucos anos; passagens pelo Chile, cidade em que chegou a viver alguns meses;
depois nessa ordem ela conta suas aventuras pela Grécia, Istambul, Marrocos,
Rio, Japão e Peru, entre outros lugares bacanas. Nem dá para escolher, todos os
relatos são pura diversão.
Desconfio
que a Martha já ensaiasse há algum tempo essa aventura pela literatura
odepórica e digo o motivo da minha desconfiança: na sua obra de 1997, Trem-bala, aparece um texto intitulado Viajar para dentro, em que ela escreve
com muito sentimento sobre o ato de viajar, bem ao estilo dos textos que você
encontra aqui no blog e que diz o seguinte:
“(...)
Viajar é transportar-se sem muita bagagem para melhor receber o que as andanças
têm a oferecer. Viajar é despir-se de si mesmo, dos hábitos cotidianos, das
reações previsíveis, da rotina imutável, e renascer virgem e curioso, aberto ao
que lhe vai ser ensinado. Viajar é tornar-se um desconhecido e aproveitar as
vantagens do anonimato. Viajar é olhar para dentro e desmascarar-se.”
O
próprio título do livro, que por sua vez é o título da última crônica dessa
coletânea, Trem-bala, remete aos
deslocamentos. Nesse texto a Martha traça um interessante paralelo entre a vida
que a gente leva e um trem que viaja num ritmo alucinante; começa lembrando o
leitor daquela antiga novela da TV Manchete, Pantanal, que quebrou paradigmas televisivos com suas longas e
repetitivas tomadas de paisagens e banhos de rios - e bela trilha sonora,
diga-se de passagem. Diz a autora, e
havemos de concordar com ela, que o povo “acostumado com a estética do
videoclipe, aquele frenesi de imagens picotadas, finalmente descansava em
frente à televisão”. Prossegue:
“A
vida lenta é como uma novela que passou anos atrás e que só pode ser resgatada
pela memória: não existe mais. Não há mais tempo para closes. Não há paciência
para uma paisagem, para um deslumbramento, para um silêncio. Ao menos não aqui,
nos trilhos urbanos, onde todos assistem à vida passar como se estivessem na
janela de um TGV.”
A
própria faz questão de informar, na introdução de sua nova obra, que viajar
está impresso em seu DNA e que o livro nasceu, de certa maneira, quando começou
a publicar posts em um finado blog em que suas narrativas de viagem davam o
maior ibope. Não duvido, o estilo de escrita da Martha é come-páginas, não dá
vontade de parar de ler.
Dessa
vez não vou transcrever nenhum dos relatos de viagem porque quero que você vá à
sua livraria predileta e compre o livro, que muito vale a pena. De lambuja
copiarei para você, leitor/a, trechos de duas pequenas crônicas da Marthilda: uma
sobre o ato de caminhar (Trem-bala) e
outra sobre o ato de viajar, (Um lugar na
janela); ambas dão uma boa noção do estilo bacana da escrita dessa gaúcha
trotamundos. Namastê!
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O sedentarismo
tem suas delícias, porém elas acomodam-se bem na região do abdômen e dali não
saem, dali ninguém as tira. É? Você está se lixando. Aos sábados de manhã,
espia pela janela aquele bando caminhando pra cima e pra baixo com um headphone
no ouvido e não entende como eles têm disposição para marchar em direção ao
nada. Você ao menos tem um rumo: vai até a geladeira, até o banheiro, até a
garagem: ida-e-volta. Mas caminhar sem ter pra onde ir?
Erro
de avaliação. Todas as pessoas que caminham sabem onde querem chegar. Alguns caminham
para atingir o peso ideal, outros para desobstruir as artérias. Alguns levam o
cachorro pra passear, outros levam o cérebro para tomar a fresca. Pensar ao ar
livre é diferente de pensar na frente da tevê, faça o teste.
Alguns
caminham para enrijecer os músculos das pernas, alguns caminham para estrear os
tênis novos, ou a namorada zero km. Caminhamos para respirar melhor, para suar,
para empapar a camiseta. É o inverso da vaidade: quanto mais demolidos, maior a
auto-estima.
Caminhamos
para encontrar as árvores, reparar nas varandas dos vizinhos, olhar para o céu,
lamentar os prédios pichados, descobrir uma confeitaria até então despercebida,
olhar as capas das revistas expostas na banca, admirar um muro coberto com hera,
pensar na vida.
Caminhar
não cansa, caminhar não custa, caminhar ventila por dentro. Alivia, emagrece,
surpreende e ainda nos concede a honra de ouvir música ao mesmo tempo. Caminhar
sozinho ou acompanhado, com trajeto definido ou labiríntico, com ou sem
relógio, por esporte, recomendação médica ou peregrinação. Caminhar é meio que
uma religião.
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Muitas
pessoas decidem viajar em momentos de transição pessoal, quando sofreram alguma
perda ou estão vivendo um dilema – necessitam passar por um divisor de águas
para seguir adiante. É uma estratégia que se deve respeitar, até porque ajuda
mesmo, mas é bom não esquecer que uma viagem não realiza milagres. A felicidade
não será servida em bandeja de prata só pelo fato de a pessoa estar em um local
distante de onde costuma sofrer seus revezes.
Decolagens
nos dão a impressão de estarmos passando por cima dos problemas que ficaram em
solo, mas haverá uma aterrisagem, cedo ou tarde. Claro que se ausentar é um
recurso legítimo para afastar-se do que lhe incomoda, a fim de raciocinar com
mais clareza e se distrair com outras coisas, mas acreditar em soluções de
pronta-entrega é ilusão, não compatibiliza com o que uma viagem pode realmente
lhe trazer de benéfico.
Um desses
benefícios é enxergar o mundo com um olhar novo e inspirado. Um boteco, um
açougue, uma igreja, um bonde, uma tabacaria, um poste, uma janela, uma placa
de rua: na sua cidade natal, você quase não observa mais o mobiliário urbano e os
detalhes que compõem o todo que nos cerca – já em Lisboa, em Tiradentes, em
Bariloche, cada um desses lugares ganha poesia. É quando nos permitimos ficar
rendidos pela beleza e pelo valor estético daquilo que, no nosso cotidiano,
depreciamos como se fosse uma futilidade.
Na pressa
de sair para trabalhar, de não chegar atrasado, de vencer os obstáculos de uma
segunda-feira qualquer, permanecemos cegos diante do que há de encantador em
cada esquina, em cada avenida que nos são costumeiras.
Viajar
não cura sofrimentos, mas nos faz perceber que podemos ser bem mais do que
turistas esporádicos – podemos, isso sim, ser viajantes durante os 365 dias do
ano, em qualquer lugar em que se estiver, incluindo onde se mora. Comprometer-se
com o encantamento contínuo pela vida não impede desconfortos do coração,
dívidas com o banco ou conflitos familiares, mas dá uma trégua pra alma.
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Leia:
Um lugar na janela: relatos de viagem. Martha Medeiros. Ed. L&PM, 2012.
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