.
Há
coisa de seis anos ganhei um livro intitulado Sul: viagens, escrito pelo jornalista português Miguel Sousa
Tavares, autor que já foi citado anteriormente aqui no Odepórica, num post sobre desertos.
O
livro é uma coletânea de textos e fotos de diversas viagens do Miguel, que se
intitula um contador de histórias a quem pagam para percorrer o mundo e contar
o que viu. Sorte a dele. Nesse livro de bonita edição, o português relata o que
viveu em suas perambulações pelo sul do planeta, que em sua definição engloba
países da África, Ásia, América do Sul, Europa e Caribe. Um sul abrangente,
como se vê.
Gostei
do livro, das fotos e do jeito que o Miguel escreve, embora nunca me sentirei
confortável de verdade com a gramática e o vocabulário lusitano, tanto que
raramente compro edições de autores publicadas na ortografia de Portugal. Acho
que eles devem sentir o mesmo em relação à nossa escrita, e nisso nada há de mal.
Mas
há uma coisa que não me encanta muito ao ler os relatos do viajante português:
sua escrita está mais para o jornalismo do que para a literatura; percebe-se o
cuidado dele ao narrar aquilo que viu com detalhes mais ou menos precisos, como
se ele escrevesse já pensando no leitor (o que se espera de um bom jornalista,
de fato), e não como se estivesse viajando com
o leitor. Percebi em seus textos uma narrativa muito linear, quando esperava encontrar
um relato de viagem com as surpresas que surgem durante o trajeto, os desvios e
as divagações que tiram o leitor da monotonia das viagens por estradas retas e
bem asfaltadas, quando a paisagem passa rapidamente pelo lado de fora do
automóvel. A máxima que diz que “viajar é perder-se” também vale, parcimoniosamente,
para a viagem narrativa. Uma questão de gosto, pode ser.
Por
uma dessas coincidências bobas do destino, enquanto terminava a leitura de Sul: viagens, vi numa banca de jornal
outro título do Miguel, desses livros de capa dura que saem em coleções
temáticas; a coleção em questão, editada pela Folha de São Paulo chama-se
“Literatura Ibero-Americana” e coube ao Miguel Tavares o volume de número 17, intitulado
No teu deserto (2009).
É
dessas obras ligeiras de cem páginas, de capítulos curtos que se lê com prazer
numa tarde de folga. Mais uma vez o Miguel se volta para o deserto, cenário que
parece inspirá-lo mais do que qualquer outro. Diz ele que já visitou o Saara mais
de dez vezes e isso já demonstra algum tipo de obsessão, não fosse o mundo tão
grande e à espera de inúmeros lugares a serem explorados. Não estou julgando o
moço, de forma alguma, porque também sou do tipo que gosta de repetir viagens e
cenários, então estamos em casa.
Agora
vou ser didático. O livro tem doze capítulos; até o capítulo V, quem narra a
história é o Miguel. Do capitulo VI ao XII a coisa muda de figura, e então
começa o jogo de troca narrativa: uma vez o Miguel, a outra a Cláudia - sua
companheira de aventura, depois o Miguelito, depois ela novamente e assim vai.
Parece uma troca de cartas, e a coisa quando bem feita fica até interessante e
divertida. A história? Pois. É simples, vamos lá: um jornalista, que é o
Miguel, viaja com uma caravana para o Saara para fazer uma reportagem para um
programa de televisão português.
A
caravana de 15 jipes e 4 motos vai percorrer a rota saariana por mais de um
mês, mas o Miguel só poderá encontrar seus companheiros de viagem alguns dias
depois, em um local combinado previamente, por conta dos trâmites burocráticos
para poder filmar na Argélia. A viagem aconteceu no final dos anos oitenta,
tempo em que os viajantes e aventureiros ainda não contavam com as facilidades
de hoje, como o GPS e a internet. Sim, isso deve ser levado em consideração
quando o assunto é aventura e risco.
Começa
escrevendo entre parênteses (literalmente) que, no final da história, sua
companheira de viagem, a jovem Cláudia, morre. Pá-pum. Juro que não entendi
qual foi a do Miguel, entregar assim aquilo que deveria ter sido deixado para o
final do relato. Se um dia eu me encontrar com ele por aí, juro que lhe darei
um peteleco na orelha.
O
gatilho que fez com que resolvesse escrever sobre aquela viagem de 87 foi uma
fotografia largada num fundo de gaveta, junto a tantos outros velhos retratos.
A lembrança da jovem, a saudade de sua presença (nada mais lusitano do que a
saudade) surgida ao olhar para uma foto de Cláudia, fez com que resolvesse
escrever sobre a história deles dois, ambientada nas areias saarianas.
Bom,
agora você deve estar achando, como ocorreu comigo, que teríamos pela frente
uma narrativa de viagem com pitadas de romance, um tipo de viagem de aventura com
direito a longos diálogos sobre relacionamento homem/mulher ao estilo Antes do amanhecer/Antes do pôr-do-sol,
filmes memoráveis nesse quesito, que nem todo mundo gosta mas que eu curto de
montão (aliás, quando li No teu deserto
eu imaginei a personagem de Cláudia com a cara da Julie Delpy).
Nada
disso, nenhum romance à vista; fica no ar se rolou alguma coisa entre Miguelito
e Cláudia. Será? Ninguém sabe, mesmo quando ambos dormem juntos na barraca. Ou
não aconteceu nada, biblicamente falando, ou o Miguel agiu mui
cavalheirescamente, por respeito à memória da amiga. Não pude deixar de pensar
assim: se o jornalista fosse um brasileiro narrando a aventura, duvido que
deixaria de fora um affaire no meio
do deserto, compartilhando noites geladas com uma gata dentro de uma barraca de
camping. Você duvida?
Deixando
essas bobagens de lado, vamos ao que interessa, que é a viagem em si. Um
crítico da Folha escreveu que nessa
obra reconhecem-se os rastros deixados por escritores como Hemingway, Camus e
Paul Bowles, meus ídolos literários. Se
tais traços existem, então eles se encontram bem apagadinhos, bem mesmo. Mas não
digo isso para desmerecer o texto do Miguel Tavares, só o faço porque decidi comprar
o livro por conta desse comentário escrito na capa de trás da obra e não
encontrei ligação entre esta e outras obras dos autores citados, a não ser as
coincidências geográficas e o cenário do deserto (a Oran e as travessias de
navio, de Camus, o deserto e o povo árabe, de Bowles...)
Há
bons e maus momentos na narrativa do Miguel Tavares. Vamos aos bons, àquilo que
faz valer a pena a leitura: a fluidez narrativa, a descrição dos locais, os
muitos perrengues pelos quais passaram os viajantes e que dão ao relato uma boa
dose de adrenalina, os capítulos enxutos com ganchos que incitam a continuar
com a leitura página após página, e o capítulo V, o qual gostei muito e que
você poderá ler um trecho logo abaixo.
O
que me causou estranheza e me fez torcer um pouco o nariz foi justamente a
construção da personagem de Cláudia, que é real e que, falecida, jamais poderá
contar a sua versão dos fatos. Entenda: se o relato não é uma ficção, até que
ponto o autor tem o direito (ou pelo menos a capacidade) de expressar os
sentimentos de um terceiro? Meio delicado, embora o narrador não tenha
absolutamente tratado a companheira com um mínimo de leviandade, muito pelo
contrário, a impressão que se tem é que a jovem que o acompanhou era mais
madura do que ele próprio, homem viajado e muito mais vivido.
E
como acontece com tantos escritores, há de se ter um domínio muito bom da
escrita e uma percepção muito perspicaz da mente humana para poder caracterizar
com autenticidade a identidade do gênero oposto ao daquele que escreve. Há
nuances que diferenciam o pensamento e a maneira de agir de homens e mulheres
que poucos (as) são capazes de captar. É uma vereda traiçoeira, e o risco é o
de não conseguir convencer o leitor de que as palavras que saem da boca da
personagem soem verossímeis.
No
caso do Miguel Tavares, não consegui deixar abstrair que os pensamentos de
Cláudia não eram dela, mas uma projeção do próprio autor (o que sempre será de
fato, mas que não deveria ser tão facilmente percebido); em algumas passagens,
por exemplo, temos a impressão de que o autor é um tanto egocêntrico, quando
não arrogante - outro perigo de falar de si próprio através da boca de outro
personagem.
Para
completar, não gostei da maneira como o Miguel elaborou a questão da perda, da
morte da amiga (que não se sabe se foi amante)... Teria Cláudia cometido
suicídio? A história é boa, talvez algumas páginas a mais tratariam de dar mais corpo à narrativa,
talvez ele pudesse explorar mais a questão da solidão, de como uma travessia
pelo deserto mexe com os sentimentos do viajante, com sua participação no
mundo, como tão magistralmente escreveu Paul Bowles em O Céu que nos protege...
Enfim,
de um modo geral, mesmo com alguns tropeços, é leitura que vale a pena essa a
do Miguel Sousa Tavares. Fecho o post com um excerto do capítulo que mencionei
acima, na única passagem onde pude sentir de verdade o Miguel entregue de corpo
e alma à magia do deserto. Namastê!
♣
Na
verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter
sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de
tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios,
não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum,
excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos – e esse é
assustador. Será assim a morte, também, Cláudia?
Quando
um de nós ficava parado a contemplar o deserto, o outro não deveria dizer nada.
Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em frente ao nada ou ao
absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma alma fútil. Tudo o que se
diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que
falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega
e impõe o silêncio. Mas, naqueles dias, eu estava sempre com pressa. Alguém
tinha de estar sempre com pressa e coubera-me a mim, por função. Só não tinha
pressa à noite, depois de montado o acampamento, cozinhando o jantar, revisto e
arrumado o jipe e de ter passado para um caderno as notas do trabalho do dia e
quando, enfim, me sentava com os outros à lareira a olhar as estrelas do
Sahara.
Um
dia, porém, depois de mais uma paragem para colher imagens, ao regressar ao
jipe vi que tinhas ficado ao lado da pista, a olhar em frente, como se tivesse
desligado de tudo. Ia gritar-te, buzinar-te, quando qualquer coisa na maneira
como tu estavas em pé a olhar o deserto, qualquer coisa na maneira como tinhas
as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça ligeiramente inclinada de lado, o cabelo
varrido pelo vento, me fez ficar quieto ao volante. E fiquei assim a
observar-te até que tu virasses e visses que estava à tua espera. Aprendi que é
preciso dar tempo aos outros para olharem. Se não fosse para isso, por que
teríamos nós vindo ao deserto?
Muitos
anos mais tarde, neste ano em que escrevo esta história, estava num fim do
mundo, junto ao rio Guadiana, num sítio tão vazio quanto o deserto, lá em
baixo, no Alentejo. Estava a recuperar o fôlego de uma longa caminhada e
tinha-me sentado numa pedra a olhar o rio que corria no fundo do desfiladeiro.
Creio que estaria como tu estavas naquele dia, o mesmo olhar perplexo perante a
vastidão daquele cenário: há alturas em que a beleza é tão devastadora que magoa.
Devia haver qualquer coisa na forma como eu olhava aquela paisagem, todo aquele
despojamento humano, que fez com que o alentejano que estava comigo, e que
antes tinha sido pastor naqueles vales, comentasse:
- A
terra pertence ao dono, mas a paisagem pertence a quem sabe olhar.
E
era assim connosco naqueles dias, também. Éramos donos do que víamos: até onde
o olhar alcançava, era todo nosso. E tínhamos um deserto inteiro para olhar.
♣
Leia:
No teu deserto. Miguel Sousa
Tavares. 1ª ed. – São Paulo, 2012. Coleção Folha Literatura Ibero-Americana.
MEDIAfashion.
Sul: Viagens.
Miguel Sousa Tavares. Publicado em Portugal pela Editora Oficina do Livro. O
capítulo final, intitulado “A pista para Tamanrasset” trata da mesma viagem
relatada pelo escritor em No teu deserto
e acrescenta detalhes pormenorizados da rotina da caravana pelo Saara. Para
amantes desse tipo de aventura, vale a pena a leitura.
♣