
Publicada há exatamente 60 anos, a Autobiografia de um Iogue relata a jornada espiritual de Mukunda Lal Ghosh desde os primórdios de sua vida. Nascido em 1893, numa cidade próxima dos Himalaias indianos, Mukunda teve uma família numerosa e de casta alta, detalhe que ilustra sua condição social. Seu pai era um alto funcionário de uma das maiores companhias ferroviárias da Índia, o que, além de lhes garantir certa estabilidade financeira, os obrigava a mudar freqüentemente de cidade. Essas viagens seguramente acabaram por moldar a personalidade do pequeno Mukunda, como ficaremos sabendo ao longo de sua narrativa.
"Um imenso clarão de luz manifestou-se instantaneamente em minha visão interior. Divinas figuras de santos, sentados em postura de meditação em cavernas de montanhas, passavam, como imagens de um filme em miniatura, na grande tela brilhante dentro de minha testa.
- Quem são vocês?- perguntei em voz alta.
- Somos iogues do Himalaia. – É difícil descrever a resposta celestial; meu coração vibrava.
- Ah, como anseio ir ao Himalaia e tornar-me um de vocês! A visão desapareceu, mas os raios prateados expandiram-se em círculos cada vez maiores, até o infinito.
- Que maravilhoso esplendor é este?
- Eu sou Ishwara
[1]. Eu sou Luz! – A voz era de nuvens murmurantes.
- Quero unir-me a Ti!" (Yogananda, 1999, p. 12)
Esse foi o primeiro contato de Mukunda com o mysterium tremendum et fascinans, para usar o pomposo termo de Rudolf Otto, mas esse relato, retratado logo no início da volumosa obra de mais de quinhentas páginas, não deve assustar aqueles que se arrepiam só de ouvir falar em fenomenologia religiosa; uma abordagem exclusivamente fenomenológica da Autobiografia seria puro reducionismo. Para além dos fenômenos, fica a lição de um homem que fez o Ocidente dialogar com o Oriente, tomando o cuidado de não enaltecer uma cultura sobre a outra.

O iogue peregrino

Uma das coisas que mais chamam a atenção na história contada por Yogananda é a freqüência de suas viagens. Devemos ter em mente que o autor viveu no começo do século passado, quando viajar era uma grande aventura e uma necessidade básica àqueles que viviam motivados por descobrir as surpresas do mundo, que, no caso de Yogananda, sempre estiveram associadas ao seu fascínio pelo mundo espiritual.
A busca espiritual de Yogananda não se limitou às infindáveis horas de meditação e prática do yoga. Embora demonstre que seu único interesse era atingir a auto-realização através da prática da Kriya Yoga
[3], sempre foi levado a participar da vida mundana, muitas vezes a contragosto, a princípio por imposição de seu pai e mais tarde de seu guru, Sri Yukteswar. A imagem de um iogue sentado numa caverna do Himalaia – na verdade o grande desejo almejado por Yogananda – deu lugar a um outro tipo de ascetismo, que o levou a peregrinar pelas diversas regiões da Índia e mais tarde a outras regiões do mundo.A peregrinação, no caso de Yogananda, se deu dentro dos dois conceitos clássicos do termo: a jornada interna e a deambulação pelos santuários e locais sagrados; suas andanças, descritas na Autobiografia, foram tão relevantes quanto suas práticas espirituais, o que nos leva a refletir sobre a importância que pode ter uma viagem na experiência religiosa.
Em 1920, poucos anos depois de concluir sua formação universitária, Yogananda recebe a missão de viajar para os Estados Unidos como representante da Índia no Congresso Internacional de Religiosos Liberais, em Boston, onde fez uma palestra sobre “A Ciência da Religião”
[4]. Acabou ficando quinze anos no país, ensinando e iniciando milhares de devotos nas técnicas da Kriya Yoga. Após esse período, voltou uma única vez à Índia, onde viajou para diversas regiões de sua terra natal. Um dos encontros mais marcantes de Yogananda se passou em Wardha, no ashram de Gandhi, a quem Yogananda chama de santo. Seu relato, recheado de sabedoria como em toda a obra, guarda espaço para um certo despojamento e um humor que surpreende aqueles que esperam que um relato espiritual seja necessariamente sério e piedoso;Yogananda simplesmente foge desse perfil e isso confere à sua Autobiografia uma agradável imersão nos costumes e na religiosidade indiana.
Foi na volta à Índia que Yogananda, no período de um ano, descreve suas impressões mais interessantes. Além de Gandhi, encontro cujo relato ilustra dignamente a importância das idéias do Mahatma, Yogananda escreve sobre seu encontro com duas mulheres santas, Ananda Moyi Ma (a “Mãe impregnada de Alegria”) e Giri Bala (a “Santa que não se alimenta”), quando então somos apresentados a um universo estranhamente familiar: a história dessas santas hindus não se diferencia muito dos relatos hagiográficos das santas católicas.

Uma das passagens mais interessantes, principalmente para quem se interessa por fenômenos sobrenaturais, se dá quando, antes de voltar à Índia, em 1935, Yogananda faz uma visita a Teresa Neumann, a Estigmatizada Católica, numa cidadezinha na região da Baviera. Através das palavras de Yogananda, temos um relato marcante sobre essa mulher que, negando todas as leis naturais, viveu mais de três décadas alimentando-se de uma única hóstia consagrada por dia e, para espanto de quem estivesse presente, sofria todas as sextas-feiras (depois somente em alguns dias santos), no próprio corpo, as agonias que Cristo sofreu em seu martírio, perdendo grande quantidade de sangue através das chagas que nele se abriam.

O peregrino yogue, antes de pisar nas terras indianas, aproveita a entrada por Londres para viajar, após a pequena estada na Alemanha, para alguns países da Europa, visitando santuários; cruzando o Mediterrâneo, chega à Palestina e percorre a Terra Santa, onde, segundo suas palavras, “mais do que nunca me convenci do valor da peregrinação”.(Yogananda, 1999, p.403).
Depois da Palestina, ainda tem fôlego para viajar ao Cairo; desce o mar Vermelho, cruza o mar da Arábia e chega à Índia, onde permanece um ano, até sua volta à Califórnia.
A importância da obra
O fato de ser considerada um clássico não torna necessariamente uma obra leitura obrigatória. Algumas valem por servirem como importante documento de uma época, outras pela própria qualidade e riqueza literária, algumas até pela simples curiosidade, devido ao prestígio que carregam com o passar dos anos. O que justificaria, então, encarar as mais de quinhentas páginas da Autobiografia de um Iogue?
Isso dependerá daquilo que o leitor espera encontrar numa autobiografia. Nem todo mundo conhece Paramahansa Yogananda, mas todos, principalmente os que se interessam um pouco por religião, já leram alguma coisa sobre as religiões orientais em geral e sobre o hinduísmo em particular. O espaço que a cultura e a filosofia indiana ganhou na mídia desde a época da contracultura, por um lado trouxe mais familiaridade com a espiritualidade que veio agregada ao “pacote” de tudo o que foi apresentado como “novidade” ao mundo ocidental: as roupas, a alimentação, a música, entre outras coisas; essa abertura, por outro lado, de certa forma também banalizou tudo, incluindo a religiosidade. É aqui que entra a importância de Yogananda e sua obra: a autenticidade daquilo que escreveu, com a garantia de quem viveu aquilo que ensinou. Como todos os grandes mestres de todas as religiões, sua vida foi um modelo de conduta que até hoje inspira milhares de estudantes e devotos em todo o mundo.
Uma das chaves de leitura da Autobiografia se encontra justamente nas inúmeras notas de rodapé que aparecem ao longo da escrita; aqui, particularmente, irá se interessar aquele que busca compreender com mais clareza a terminologia de vários conceitos do hinduísmo, e um prático índice remissivo facilita a vida dos que usarem a obra como uma pronta-referência quando quiserem fazer uma pesquisa rápida sobre um determinado termo em sânscrito.
Histórias, contos, lendas, poemas, costumes, tudo isso vai sendo costurado, página a página, por Yogananda ao longo de sua autobiografia. Mesmo após sessenta anos, sua leitura continua instigante, contagiante, cheia de vida, como se pudéssemos crer que, entre essas tantas linhas, um pouquinho de magia tivesse sido aspergida, porque, uma vez começada, não se consegue parar a leitura.
Yogananda deixou a vida terrena em 1952. Seu mahasamadhi

A obra de Yogananda, disponível em diversos idiomas, é usada em universidades de todo o mundo, nos mais variados cursos: filosofia e religião orientais, literatura, psicologia, sociologia, antropologia, história, etc. Numa nota do autor, na edição de 1951, Yogananda afirmou que a grande recepção que sua obra obteve em diversos países era uma resposta afirmativa à questão de que o yoga podia ter lugar e valor significativo na vida do homem moderno.
Se, porém, nenhuma dessas razões forem suficientes para motivar a leitura da Autobiografia, então resta a garantia de que o leitor irá se emocionar com as passagens da vida desse grande homem, tão cheio de defeitos e virtudes como qualquer um de nós, um pouco mais sábio e viajado, talvez, mas que acima de tudo soube contar uma boa história, tão fascinante quanto a vida de um iogue peregrino pode ser.
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[1] Nome sânscrito para indicar Deus ou Criador do mundo
[2] Do sânscrito ananda, “bem aventurança” e yoga, união. Escolhido pelo próprio autor da Autobiografia, Yogananda significa “bem-aventurança através da união divina”.
[3] A raiz sânscrita de Kriya é kri, fazer, agir, reagir; Kriya Yoga é a “união (yoga) com o Infinito por meio de certa ação ou rito (kriya)”. Na Autobiografia, o termo yoga é usado como gênero feminino: a yoga, ao invés de o yoga, que seria a forma correta de acordo com os estudiosos da língua sânscrita.
[4] A palestra proferida por Yogananda teve seu conteúdo publicado na íntegra na forma de um pequeno livro intitulado “The Science of Religion”, publicado na Índia pela Yogoda Satsanga Society of India.
[5] A derradeira vez que um iogue abandona conscientemente seu corpo. (Yogananda, 1999, p.536)
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Para ir mais longe, acesse o portal da Self-Realization Fellowship, organização fundada por Yogananda que cuida de todo o seu legado.
Em português, vale a visita ao site Yogananda.com.br